Eu sou a mosca que pousou em sua sopa. Eu sou a mosca que pintou pra lhe abusar. (…) E não adianta vir me dedetizar. Pois nem o DDT pode assim me exterminar. Porque você mata uma e vem outra em meu lugar.
Raul Seixas em “Mosca na Sopa”
Sinônimo de incômodo e desprezo, a mosca é um dos insetos mais rechaçados do convívio social. Ela transtorna reuniões familiares, importuna tradições de ordem e controle, desnuda as estruturas assépticas. A mosca na sopa, personificação adotada pelo compositor e músico brasileiro Raul Seixas, é uma anarquista pública e notória: sua presença é hostilizada, mas independe de aceitação; por mais que seja intimidada, violentada, aprisionada e degolada, ela volta em múltiplos pares. E é com tamanha persistência e deboche que elas, as famigeradas moscas, comunicam sua mensagem.
No final da década 1970, as moscas também marcavam presença física e metafórica em território brasileiro. Para os agentes da ditadura militar, todo e qualquer elemento subversivo que atentasse contra a ordem, o governo e o trinômio “tradição – família – propriedade”, deveria ser sumariamente extinto. Naqueles anos de portas fechadas, entre a periferia de Recife e Olinda, cidades do Nordeste brasileiro, o diretor Hilton Lacerda ambientou a história de uma trupe de artistas que criava um universo próprio de irreverência, zombaria e autoria no teatro-cabaré Chão de Estrelas, criação inspirada pelo grupo de teatro Vivencial Diversiones, que existiu entre 1972 e 1981.
Na ficção, o sistema protocolar de regras, ordens, hierarquia e disciplina do sistema militar, exercia influência angustiante em um tímido recruta nascido e criado no interior de Pernambuco, tornando-lhe penoso e mortífero o dever de sustentar uma máscara que mal lhe cabe no rosto. Esse é o fio condutor da pólvora que explode em “Tatuagem” (Brasil, 2013), filme do cineasta pernambucano Hilton Lacerda em sua estreia como diretor depois de longa experiência como roteirista. A trama traz como pano de fundo o romance entre o agitador cultural e performer Clécio Wanderley, interpretado pelo ator Irandhir Santos, e o soldado raso Arlindo Araújo, conhecido como Fininha, personagem vivido por Jesuíta Barbosa.

“Tatuagem” fala de resistência política, criação explosiva, anarquista, debochada, livre; é uma afirmação do espaço daqueles que são esmagados por uma conjuntura armada, mas que resistem, queimam, renovam. Na trama, Chão de Estrelas nasce no seio da periferia, epígrafe acentuada no início do longa-metragem com a fala de Clécio ao destacar que o cabaré é “o Moulin Rouge do subúrbio, a Broadway dos pobres, o Studio 54 da favela”, em clara referência aos internacionalmente conhecidos, cultuados e caros ambientes de apresentação artística e corporal da época. É nesse perímetro de reinvenções que o diretor Hilton Lacerda detém o olhar, criando uma narrativa audaciosa.
Clécio e Fininha se conhecem por meio de Paulete (Rodrigo Garcia), irmão da então namorada do recruta. Enquanto Clécio dirigia um espetáculo debochado, Fininha vivia aprisionado nos ditames do quartel, detalhe exposto logo nos minutos iniciais, com a visão do rapaz enquadrado pelas barras dos beliches — efeito criado pela utilização do movimento de zoom-out. O envolvimento desse casal improvável, vai descortinando uma nova visualização e entendimento do mundo, abrindo espaço para as sensibilidades de dois universos distintos. Rodeado pela liberdade em todos os sentidos, Fininha vai, aos poucos, sentindo seu corpo como parte do processo artístico e vivencial que explode no teatro do Chão de Estrelas. Assim como o mitológico canto da sereia, a magia que nasce no cabaré começa a encantar o jovem recruta, mostrando-lhe um ambiente de troca de relações bem mais autêntico do que costumava vivenciar.
Cena do filme “Tatuagem” mostrando o “aprisionamento” de Fininha
No filme, o “cair da noite” assume uma simbologia extremamente importante ao abrir novas pontes de resistência. Pontes que podem ser observadas no público que frequenta o teatro-cabaré, formado por homossexuais, simpatizantes, militantes da luta de classes e intelectuais esquerdistas – esta última figura é adotada pelo professor Joubert (Sílvio Restiffe) e seus poemas de cunho político e libertário, além da sua produção experimental, feita com uma câmera Super‑8, direcionada para registrar os momentos marcantes de produção/apresentação dos números do Chão de Estrelas. É através da noite, do erotismo, da luxúria escancarada, do cuspe anárquico em forma de performances ousadas com o corpo e a linguagem, que “Tatuagem” vai traçando novas rotas de peregrinação de forma arrojada.

O diretor Hilton Lacerda vem de uma longa caminhada como roteirista, trazendo na bagagem filmes como “Febre de Rato” (2011), “Amarelo Manga” (2002), “Baixio das Bestas” (2006), em parceria com o cineasta Cláudio Assis, e “Cartola – Música para os Olhos” (2006), onde divide a direção com Lírio Ferreira. A energia em construir detalhes faz a assinatura de Lacerda um diferencial palpável em “Tatuagem”.
A opção por contar a história de amor entre dois homens ganha contornos autênticos: Clécio e Fininha dividem o afeto íntimo com os espectadores; o romance – claro, direto, cru – não está ali apenas para inquietar os que ainda desviam o olhar diante das cenas de beijo ou de sexo entre dois homens; o amor homossexual e o choque de vivências que ele representa (o agitador cultural e o militar) ultrapassam a acomodação da militância padronizada: nessa relação de polos opostos está o grito dos amores, grupos, movimentos, pensamentos, vidas e sentimentos rotulados como periféricos. É esse o elemento de pulsão levantando por “Tatuagem”, levando à derrocada da hegemonia das instituições sagradas e do desfile dos triunfantes. Para o palco e o público do Chão de Estrelas, não há lugar para preconceitos, não há mártires para castrações. O que existe no cabaré-teatro é o rompimento de tradições; um lugar onde múltiplas jornadas não se chocam, mas se complementam, tendo como exemplo máximo a figura de Clécio: diretor, poeta, agitador, anarquista, amante e pai.

A liberdade e a vivência consciente também estão presentes no conceito de família apresentando no filme. Tuca — fruto do relacionamento do agitador cultural com Deusa, mãe solteira, adepta dos mesmos ideais — circula livremente pelas dependências do cabaré, observando os trabalhos de produção do pai. Em uma cena significativa, Clécio pede à Deusa que não traga mais o menino ao cabaré pois aquele “não é lugar para criança”. Nesse gancho, a mãe responde que “não há lugar adequado, e sim educação adequada”, fazendo referência direta a um modelo educacional que aposta na liberdade, consciência e tolerância.
Toda essa provocação clara e subversiva deixa rastros pelo filme e encontra outra forte representante com a personagem Paulete. É na alegria do escândalo que Paulete alimenta o sonho de ser ator reconhecido, dando mais vida ao longa-metragem com suas piadas espirituosas, seus berros e gestos corporais esfuziantes. É difícil destacar uma única cena dramatizada pelo ator Rodrigo García na pele de Paulete: ele consegue fazer os holofotes circularem em torno de si, seja com expressões jocosas, canções despudoradas ou caras e bocas risíveis. García tem o poder de transformar a caricatura do artista gay transvestido em indumentárias femininas, em uma verdadeira metamorfose artística.

Há muita intensidade e autenticidade em “Tatuagem” – fato que rendeu sucesso de crítica, prêmios e menções honrosas para o filme e seus atores. Mais uma prova de que rotas alternativas são possíveis, tanto no âmbito do pensamento quanto na ação. O audiovisual brasileiro precisa de olhares diferenciais, novas linguagens, desafios, posturas e riscos, não só da parte dos produtores, mas também de espectadores. Cinema é feito de sensibilidades e da persistência de “moscas” que não se intimidam com o que está dito e feito, trazendo para si a tarefa de questionar a naturalização do mundo. Construir panoramas é como tatuar a pele: na marca eternizada, passado, presente e futuro se comunicam em um mesmo traço. E é no caminho que percorre esse traço que está o novo.