Tag: Irandhir Santos

  • Tatuagem (2013), de Hilton Lacerda: irreverência e anarquismo | Análise

    Tatuagem (2013), de Hilton Lacerda: irreverência e anarquismo | Análise

    Eu sou a mosca que pousou em sua sopa. Eu sou a mosca que pin­tou pra lhe abusar. (…) E não adi­anta vir me dede­ti­zar. Pois nem o DDT pode assim me exter­mi­nar. Porque você mata uma e vem out­ra em meu lugar.

    Raul Seixas em “Mosca na Sopa”

    Sinôn­i­mo de incô­mo­do e despre­zo, a mosca é um dos inse­tos mais rechaça­dos do con­vívio social. Ela transtor­na reuniões famil­iares, impor­tu­na tradições de ordem e con­t­role, desnu­da as estru­turas assép­ti­cas. A mosca na sopa, per­son­ifi­cação ado­ta­da pelo com­pos­i­tor e músi­co brasileiro Raul Seixas, é uma anar­quista públi­ca e notória: sua pre­sença é hos­tiliza­da, mas inde­pende de aceitação; por mais que seja intim­i­da­da, vio­len­ta­da, apri­sion­a­da e dego­la­da, ela vol­ta em múlti­p­los pares. E é com taman­ha per­sistên­cia e deboche que elas, as famiger­adas moscas, comu­ni­cam sua mensagem.

    tatuagem-hilton-lacerda-analise-posterNo final da déca­da 1970, as moscas tam­bém mar­cavam pre­sença físi­ca e metafóri­ca em ter­ritório brasileiro. Para os agentes da ditadu­ra mil­i­tar, todo e qual­quer ele­men­to sub­ver­si­vo que aten­tasse con­tra a ordem, o gov­er­no e o trinômio “tradição – família – pro­priedade”, dev­e­ria ser sumari­a­mente extin­to. Naque­les anos de por­tas fechadas, entre a per­ife­ria de Recife e Olin­da, cidades do Nordeste brasileiro, o dire­tor Hilton Lac­er­da ambi­en­tou a história de uma trupe de artis­tas que cri­a­va um uni­ver­so próprio de irreverên­cia, zom­baria e auto­ria no teatro-cabaré Chão de Estre­las, cri­ação inspi­ra­da pelo grupo de teatro Viven­cial Diver­siones, que exis­tiu entre 1972 e 1981.

    Na ficção, o sis­tema pro­to­co­lar de regras, ordens, hier­ar­quia e dis­ci­plina do sis­tema mil­i­tar, exer­cia influên­cia angus­tiante em um tími­do recru­ta nasci­do e cri­a­do no inte­ri­or de Per­nam­bu­co, tor­nan­do-lhe penoso e mortífero o dev­er de sus­ten­tar uma más­cara que mal lhe cabe no ros­to. Esse é o fio con­du­tor da pólvo­ra que explode em “Tat­u­agem” (Brasil, 2013), filme do cineas­ta per­nam­bu­cano Hilton Lac­er­da em sua estreia como dire­tor depois de lon­ga exper­iên­cia como roteirista. A tra­ma traz como pano de fun­do o romance entre o agi­ta­dor cul­tur­al e per­former Clé­cio Wan­der­ley, inter­pre­ta­do pelo ator Irand­hir San­tos, e o sol­da­do raso Arlin­do Araújo, con­heci­do como Fin­in­ha, per­son­agem vivi­do por Jesuí­ta Bar­bosa.

    Chão de Estrelas, o Moulin Rouge do subúrbio, a Broadway dos pobres, o Studio 54 da favela
    Chão de Estre­las, o Moulin Rouge do sub­úr­bio, a Broad­way dos pobres, o Stu­dio 54 da favela

    Tat­u­agem” fala de resistên­cia políti­ca, cri­ação explo­si­va, anar­quista, debocha­da, livre; é uma afir­mação do espaço daque­les que são esma­ga­dos por uma con­jun­tu­ra arma­da, mas que resistem, queimam, ren­o­vam. Na tra­ma, Chão de Estre­las nasce no seio da per­ife­ria, epí­grafe acen­tu­a­da no iní­cio do lon­ga-metragem com a fala de Clé­cio ao destacar que o cabaré é “o Moulin Rouge do sub­úr­bio, a Broad­way dos pobres, o Stu­dio 54 da favela”, em clara refer­ên­cia aos inter­na­cional­mente con­heci­dos, cul­tua­dos e caros ambi­entes de apre­sen­tação artís­ti­ca e cor­po­ral da época. É nesse perímetro de rein­venções que o dire­tor Hilton Lac­er­da detém o olhar, crian­do uma nar­ra­ti­va audaciosa.

    Clé­cio e Fin­in­ha se con­hecem por meio de Paulete (Rodri­go Gar­cia), irmão da então namora­da do recru­ta. Enquan­to Clé­cio diri­gia um espetácu­lo debocha­do, Fin­in­ha vivia apri­sion­a­do nos dita­mes do quar­tel, detal­he expos­to logo nos min­u­tos ini­ci­ais, com a visão do rapaz enquadra­do pelas bar­ras dos belich­es — efeito cri­a­do pela uti­liza­ção do movi­men­to de zoom-out. O envolvi­men­to desse casal improváv­el, vai descorti­nan­do uma nova visu­al­iza­ção e entendi­men­to do mun­do, abrindo espaço para as sen­si­bil­i­dades de dois uni­ver­sos dis­tin­tos. Rodea­do pela liber­dade em todos os sen­ti­dos, Fin­in­ha vai, aos poucos, sentin­do seu cor­po como parte do proces­so artís­ti­co e viven­cial que explode no teatro do Chão de Estre­las. Assim como o mitológi­co can­to da sereia, a magia que nasce no cabaré começa a encan­tar o jovem recru­ta, mostran­do-lhe um ambi­ente de tro­ca de relações bem mais autên­ti­co do que cos­tu­ma­va vivenciar.

    Cena do filme “Tat­u­agem” mostran­do o “apri­sion­a­men­to” de Fininha

    No filme, o “cair da noite” assume uma sim­bolo­gia extrema­mente impor­tante ao abrir novas pontes de resistên­cia. Pontes que podem ser obser­vadas no públi­co que fre­quen­ta o teatro-cabaré, for­ma­do por homos­sex­u­ais, sim­pa­ti­zantes, mil­i­tantes da luta de class­es e int­elec­tu­ais esquerdis­tas – esta últi­ma figu­ra é ado­ta­da pelo pro­fes­sor Jou­bert (Sílvio Res­tiffe) e seus poe­mas de cun­ho políti­co e lib­ertário, além da sua pro­dução exper­i­men­tal, fei­ta com uma câmera Super‑8, dire­ciona­da para reg­is­trar os momen­tos mar­cantes de produção/apresentação dos números do Chão de Estre­las. É através da noite, do ero­tismo, da luxúria escan­car­a­da, do cuspe anárquico em for­ma de per­for­mances ousadas com o cor­po e a lin­guagem, que “Tat­u­agem” vai traçan­do novas rotas de pere­gri­nação de for­ma arrojada.

    Hilton Lac­er­da

    O dire­tor Hilton Lac­er­da vem de uma lon­ga cam­in­ha­da como roteirista, trazen­do na bagagem filmes como “Febre de Rato” (2011), “Amare­lo Man­ga” (2002), “Baixio das Bestas” (2006), em parce­ria com o cineas­ta Cláu­dio Assis, e “Car­to­la – Músi­ca para os Olhos” (2006), onde divide a direção com Lírio Fer­reira. A ener­gia em con­stru­ir detal­h­es faz a assi­natu­ra de Lac­er­da um difer­en­cial palpáv­el em “Tat­u­agem”.

    A opção por con­tar a história de amor entre dois home­ns gan­ha con­tornos autên­ti­cos: Clé­cio e Fin­in­ha divi­dem o afe­to ínti­mo com os espec­ta­dores; o romance – claro, dire­to, cru – não está ali ape­nas para inqui­etar os que ain­da desvi­am o olhar diante das cenas de bei­jo ou de sexo entre dois home­ns; o amor homos­sex­u­al e o choque de vivên­cias que ele rep­re­sen­ta (o agi­ta­dor cul­tur­al e o mil­i­tar) ultra­pas­sam a aco­modação da mil­itân­cia padroniza­da: nes­sa relação de polos opos­tos está o gri­to dos amores, gru­pos, movi­men­tos, pen­sa­men­tos, vidas e sen­ti­men­tos rotu­la­dos como per­iféri­cos. É esse o ele­men­to de pul­são lev­an­tan­do por “Tat­u­agem”, levan­do à der­ro­ca­da da hege­mo­nia das insti­tu­ições sagradas e do des­file dos tri­un­fantes. Para o pal­co e o públi­co do Chão de Estre­las, não há lugar para pre­con­ceitos, não há már­tires para cas­trações. O que existe no cabaré-teatro é o rompi­men­to de tradições; um lugar onde múlti­plas jor­nadas não se chocam, mas se com­ple­men­tam, ten­do como exem­p­lo máx­i­mo a figu­ra de Clé­cio: dire­tor, poeta, agi­ta­dor, anar­quista, amante e pai.

    o performer Clécio Wanderley (Irandhir Santos) e o soldado raso Fininha (Jesuíta Barbosa)
    o per­former Clé­cio Wan­der­ley (Irand­hir San­tos) e o sol­da­do raso Fin­in­ha (Jesuí­ta Barbosa)

    A liber­dade e a vivên­cia con­sciente tam­bém estão pre­sentes no con­ceito de família apre­sen­tan­do no filme. Tuca — fru­to do rela­ciona­men­to do agi­ta­dor cul­tur­al com Deusa, mãe solteira, adep­ta dos mes­mos ideais — cir­cu­la livre­mente pelas dependên­cias do cabaré, obser­van­do os tra­bal­hos de pro­dução do pai. Em uma cena sig­ni­fica­ti­va, Clé­cio pede à Deusa que não tra­ga mais o meni­no ao cabaré pois aque­le “não é lugar para cri­ança”. Nesse gan­cho, a mãe responde que “não há lugar ade­qua­do, e sim edu­cação ade­qua­da”, fazen­do refer­ên­cia dire­ta a um mod­e­lo edu­ca­cional que apos­ta na liber­dade, con­sciên­cia e tolerância.

    Toda essa provo­cação clara e sub­ver­si­va deixa ras­tros pelo filme e encon­tra out­ra forte rep­re­sen­tante com a per­son­agem Paulete. É na ale­gria do escân­da­lo que Paulete ali­men­ta o son­ho de ser ator recon­heci­do, dan­do mais vida ao lon­ga-metragem com suas piadas espir­i­tu­osas, seus berros e gestos cor­po­rais esfuziantes. É difí­cil destacar uma úni­ca cena drama­ti­za­da pelo ator Rodri­go Gar­cía na pele de Paulete: ele con­segue faz­er os holo­fotes cir­cu­larem em torno de si, seja com expressões jocosas, canções despu­do­radas ou caras e bocas risíveis. Gar­cía tem o poder de trans­for­mar a car­i­catu­ra do artista gay trans­vesti­do em indu­men­tárias fem­i­ni­nas, em uma ver­dadeira meta­mor­fose artística.

    Rodrigo Garcia como a personagem Paulete
    Rodri­go Gar­cia como a per­son­agem Paulete

    Há mui­ta inten­si­dade e aut­en­ti­ci­dade em “Tat­u­agem” – fato que ren­deu suces­so de críti­ca, prêmios e menções hon­rosas para o filme e seus atores. Mais uma pro­va de que rotas alter­na­ti­vas são pos­síveis, tan­to no âmbito do pen­sa­men­to quan­to na ação. O audio­vi­su­al brasileiro pre­cisa de olhares difer­en­ci­ais, novas lin­gua­gens, desafios, pos­turas e riscos, não só da parte dos pro­du­tores, mas tam­bém de espec­ta­dores. Cin­e­ma é feito de sen­si­bil­i­dades e da per­sistên­cia de “moscas” que não se intim­i­dam com o que está dito e feito, trazen­do para si a tare­fa de ques­tionar a nat­u­ral­iza­ção do mun­do. Con­stru­ir panora­mas é como tat­u­ar a pele: na mar­ca eterniza­da, pas­sa­do, pre­sente e futuro se comu­ni­cam em um mes­mo traço. E é no cam­in­ho que per­corre esse traço que está o novo.

  • Décimo Segundo (2007), de Leonardo Lacca | Curta

    Décimo Segundo (2007), de Leonardo Lacca | Curta

    curta-decimo-segundo-2007-leonardo-lacca-cartazO silên­cio que pesa, arras­ta e guar­da, trans­for­man­do a ausên­cia de palavras em uma cur­va mís­ti­ca, enevoa­da. Essa descrição é uma das pos­si­bil­i­dades de “Déci­mo Segun­do” (2007), tra­bal­ho do dire­tor per­nam­bu­cano Leonar­do Lac­ca. Pre­mi­a­do em ter­ritório nacional e inter­na­cional, o cur­ta-metragem traz um recur­so ain­da pouco uti­liza­do na lin­guagem cin­e­matográ­fi­ca brasileira: o silêncio.

    As cenas avançam em direção a dois pro­tag­o­nistas, um homem e uma mul­her, que pare­cem estar em um pal­co cer­ca­do por corti­nas que abrem e fecham simul­tane­a­mente. Acom­pan­hamos a chega­da do homem e de suas malas a um deter­mi­na­do aparta­men­to, e logo somos sur­preen­di­dos por uma refer­ên­cia clara ao filme “Estra­da Per­di­da” (Lost High­way), do cineas­ta David Lynch. A clás­si­ca voz sotur­na que sol­ta no inter­fone “Dick Lau­rent is dead” (Dick Lau­rent está mor­to), pre­sente no filme de Lynch, tam­bém está no cur­ta, acom­pan­han­do até mes­mo o número exa­to de toques na cam­painha. Essa alusão é perce­bi­da como um jogo pes­soal entre o casal, já que a mul­her tam­bém faz uma brin­cadeira com seu vis­i­tante, ao escon­der as malas que ele deixa no elevador.

    curta-decimo-segundo-2007-leonardo-lacca-1

    O reen­con­tro do casal, com o abraço do homem em sua anfitriã feito de for­ma inten­sa e ao mes­mo tem­po con­strangi­da, é um dos frag­men­tos do não-dito, da ponte que vai nos pos­si­bil­i­tan­do entrar na mente dos per­son­agens. Os close-ups, o plano-sequên­cia, a câmera na mão — tremen­do cal­a­da como a própria história – e o efeito intimista de todo o enre­do per­mitem cri­ar canais de prox­im­i­dade entre per­son­agem e espec­ta­dor. Por meio das fras­es engas­gadas, surgem inda­gações curiosas sobre o casal que se encara de olhos baixos. Como teste­munhas onipresentes, pas­samos a nos per­gun­tar: “quem são essas pes­soas?”, “elas foram amantes?”, “como e quan­do tudo ter­mi­nou?”, além de notar que a importân­cia do que acon­tece ali reside, na ver­dade, no ambi­ente fora-de-cena.

    Alphonse Osbert, o pintor do silêncio (La Riviére, 1890)
    Alphonse Osbert, o pin­tor do silên­cio (La Riv­iére, 1890)

    Déci­mo Segun­do cria con­strang­i­men­tos, dis­tân­cias e expressões abafadas. Vivi­da pela atriz e dire­to­ra teatral Rita Carel­li, a anfitriã do cur­ta parece con­seguir super­ar mel­hor a invasão do pas­sa­do, per­son­ifi­ca­da pela pre­sença do homem que está ali na sua frente, com o olhar per­di­do. Na pele do vis­i­tante tími­do, o ator per­nam­bu­cano Irand­hir San­tos gan­ha força e bril­ho ao con­seguir repro­duzir todo o embaraço do reen­con­tro. Pre­mi­a­do por sua atu­ação no lon­ga “Tat­u­agem” (2013), Irand­hir reforçou o elen­co de várias pro­duções nacionais, como as con­heci­das “Tropa de Elite 2” (2010) e “O som ao redor” (2012). O ator inte­grou o elen­co da Rede Globo nas minis­séries “A Pedra do Reino” (2007) e “Amores Rou­ba­dos” (2014), e atual­mente dá vida ao per­son­agem Zelão, o cap­ataz anal­fa­beto que se apaixon­a­da pela bela e meiga pro­fes­so­ra na nov­ela “Meu Pedac­in­ho de Chão”.

    Assim como as enig­máti­cas pin­turas do francês Alphonse Osbert (1857–1939), dis­solvi­das no iso­la­men­to de luzes e névoas mis­te­riosas, Déci­mo Segun­do vai descorti­nan­do a anato­mia do silên­cio, suas pos­si­bil­i­dades e dimen­sões, e deixa a car­go do expec­ta­dor a trav­es­sia – ou não – para o inte­ri­or dos per­son­agens, suas rev­oluções, emoções e sensações.

    Assista o curta: