Um cortador de grama atravessa em ritmo monocórdio os imensos espaços de um gramado que brilha como móvel novo. Ao fundo, uma canção que nos faz lembrar dias bonitos e frases do tipo “a esperança nunca morre”. Imagens idílicas começam a se misturar até serem sumariamente quebradas pelo barulho do ventilador imerso em fumaça. Deitado em uma cama estreita, um homem fuma e transpira, transpira e fuma. Ao deixar seu santuário pessoal, ele vai de encontro à vida normal de cada dia. Uma vida de trabalho, de tédio, de cansaço, de madames lamentosas e sonhos que se perdem na fumaça do cigarro. No entanto, algumas ideias podem ser o começo de verdadeiras epifanias. É assim que o curta-metragem “Desejo” (2005) lança baforadas no rosto do espectador ao apresentar a história de um homem comum e suas cobiças construídas a partir do olhar fixo para o teto.
No curta, o porteiro Atanásio José (Wagner Moura) faz uma descoberta surpreendente em uma tarde tórrida e estimulante de glândulas sudoríparas. Deitado em sua cama, ele se deu conta da revelação que mudaria os rumos de sua vida, transformando‑o em um indivíduo realizado. Atanásio tinha agora uma obsessão: adentrar o Jockey Club Brasileiro (localizado na Gávea, bairro do Rio de Janeiro), considerado por ele o “santuário dos endinheirados”. Depois de conseguir a façanha, Atanásio saberia o que fazer – mas isso pouca importava. Para chegar ao ponto final da jornada, ele precisaria da ajuda do cunhado, Edmilson André (Lázaro Ramos), responsável pelos cuidados com o gramado do Jockey e considerado por Atanásio como um homem “direito, quieto, honesto e trabalhador – tudo isso até demais”. Preso nessa relação de causa e efeito, o porteiro faz a travessia dos seus dias sem esquecer por um momento da obsessão com o cunhado, o cortador de grama e o Jockey Club.
Com roteiro e direção de Anne Pinheiro Guimarães, “Desejo” remonta aos textos do citado Charles Bukowski e traz à beira da praia nomes como Henry Miller e Nelson Rodrigues, conectando a vida do sujeito ordinário aos devaneios que o fazem resistir, sobreviver e elaborar de um modo menos limitado a sua existência. A narrativa em off é utilizada durante todo o curta e abre espaço para a mistura entre a linguagem fílmica e literária, soprando no ar figuras irônicas, sarcásticas, ácidas e humanas.
Da clássica música “What a Wonderful World” — perpetuada na voz de Louis Armstrong – até o afamado “Melô do Piri Piri”, da popular cantora e casadoura Gretchen, “Desejo” vai além das epifanias do porteiro Atanásio e mostra que o mundo pode ter lá suas maravilhas – se a descobrirmos do nosso jeito.
Assista ao curta: