Fernando Bonassi aparentemente é mais conhecido por coautoria em roteiros de filmes nacionais de sucesso e minisséries de TV aberta. Mas é na literatura que ele se apresenta utilizando um estilo crítico, com doses dobradas de sarcasmo, a respeito da sociedade brasileira e suas excentricidades. Em O menino que se trancou na geladeira (Editora Objetiva, 2004), esse paulista traz um enredo que de longe nos lembra muitos dos fatos ocorridos no país nos últimos 50 anos, mas de perto, é muito mais minimalista e acerta em cheio, com uma crítica ferrenha aos fatos corriqueiros da nossa história política, refletida na sociedade.
Primeiramente deve-se entender que O menino que se trancou na geladeira é um romance-reportagem, o narrador deixa claro que cada linha é fruto de uma visão jornalística sobre um habitante sem identidade de um país irreconhecível. O menino, intitulado assim porque simplesmente não nos interessa a identidade dele, nasceu numa sociedade já corrompida e em uma família que pouco ligava para a existência dele. Tudo dera errado, sentia-se deslocado por não ser belo e a única menina que ele se apaixonou, o despreza. O que lhe resta, de fato, é fazer parte desse todo, de uma sociedade onde a violência é uma saída e o estilo de vida é a apatia, afinal, havia algo mais a se fazer? Para se fortalecer, após sucessivas tentativas de viver do seu modo e com as decepções que as pessoas o causam, ele decide viver dentro do seu próprio mundo, dentro de uma geladeira. E é no interior desse eletrodoméstico, de sentido metafórico, que o menino vai aprendendo a lidar com as pessoas e o sistema criado por elas. Sair da geladeira é um perigo e viver dentro dela é se entorpecer de mentiras.
Uma das características mais interessantes de O menino que se trancou na geladeira é uso das técnicas narrativas. O texto é marcado pela apresentação de um mundo peculiar cheio de discursos entrecortados e velocidade que em muitos momentos parece nos tirar o ar. Esse tempo de narrativa criado por Bonassi não soa como os longos parágrafos de Saramago, ou ainda, de Garcia Marquez, ele tem a função de criar um sentido de caos ao leitor. São tantos sarcasmos, jogados em poucas palavras, que a experiência de leitura é marcada pelo atordoamento dos fatos. Sabemos muito bem pelo que o menino passa, pois é uma hipérbole dramática do nosso cotidiano.
Outro ponto alto do livro são as denominações que o narrador, propositalmente um jornalista que necessita de dados verossimilhantes, nos apresenta a sociedade desse país sombrio onde o vive o menino. Por exemplo, a sociedade ali é dividida em os ricos, os cidadãos da faixa média e os ferrados de vez, reforçando o uso da linguagem coloquial como um dos pontos máximos de ligação com o leitor.
Em O menino que se trancou na geladeira impera a intertextualidade da literatura atual, que opera numa hiperatividade entre todas as artes, partindo inclusive do jornalismo até o teatro. É uma ficção calcada no choque do real, pois mesmo que a primeira sensação de leitura seja de um absurdo surrealista, há uma realidade latente se manifestando através disso e é justamente esse fator que prende a leitura nos textos de Bonassi: a realidade nua e crua tratada como fato corriqueiro e em tom de comédia. Rir da realidade para deixá-la menos tensa e pesada, um estilo que o autor vem praticando muito bem, inclusive em roteiros como o premiado Carandiru, ou ainda, Os Matadores, de Beto Brant.
Se você ficou interessado, uma parte do livro O menino que se trancou na geladeira está disponível para leitura gratuita no Google Docs. Para ler, clique aqui.