
Quem escreve conto ou poesia predetermina que não terá público em massa. Conto e poesia são gêneros destinados a um público fora do alvo do mercado editorial. Uma ex-jornalista que trabalha no mercado adverte: se quiser entrar, o candidato a escritor tem que escrever romance. Autores publicados por grandes editoras são romancistas. Exceção, os consagrados ao longo do tempo. E aí se tem uma vida inteira — e uma morte — de trabalho.
Valêncio Xavier, Jamil Snege, Manoel Carlos Karam, Wilson Bueno talvez sejam daquele tipo de autores que jamais atinjam o grande público. O “grande público”, essa entidade fantástica que lê “50 tons de cinza”, “O diário de um mago”, “Harry Potter” e é visado pelo mercado, nem sempre se interessa por boa literatura. Assim, se priva de ler, além dos já citados, Nelson de Oliveira, Luiz Ruffato, Ricardo Lísias e J.M. Coetzee. E, claro, nem quer saber de poesia. A não ser que o poeta se torne um fenômeno comercial, como Paulo Leminski. O grande público seguirá ignorando as obras de Alice Ruiz, Paulo Henriques Britto, Adília Lopes, Micheliny Verunschk. Lerá, quando muito, Manoel de Barros.

Reconhecido pela crítica, Valêncio morreu “esquecido” . Tão esquecido que nem sabia mais dizer seu nome. Em vida, Valêncio era esquecido. Pela manhã telefonava aos amigos para contar casos que repetiria à noite, quando os encontrasse. Era o início do “Alemão”. A doença não cortou a verve criativa e permaneceu lúcido. A frase derradeira do último livro, “Rremenbranças da menina de rua morta nua e outros livros”, publicado em 2006 é: “Estou morto.” Valêncio, ele mesmo, era seu personagem. Seguiu estritamente o conselho de Roland Barthes que dizia: “trabalhe enquanto houver sol.” A luz da razão permaneceu até o limite da lucidez.
Há alguns anos, Daniel Filho lançou uma biografia intitulada “Antes que me esqueçam”. Atores globais e outras celebridades lançam biografias e livros para não serem esquecidos. O livro, objeto misterioso numa cultura midiática audiovisual, é um amuleto que assegurará a imortalidade dos tementes do Juízo da Eternidade. É fácil prever que, à parte sua necessidade de ser irradiada pelo público, em pouco tempo essas celebridades serão esquecidas.

Na Antiguidade, os reis não podiam ser vistos pelo povo, nas tribos primitivas. Como eram considerados deuses, não podiam tocar o solo impuro, tocado por todos. Eram lhes atribuídos poderes de controlar as forças da natureza e proporcionar boas colheitas na agricultura. Mas seus poderes só se mantinham intactos longe do povo. Assim, criou-se o vínculo entre objetos/entidades sagrados e sua ocultação ou velamento público. Aparentemente, a era da reprodução instantânea inverteu o paradigma. Agora, o que deve ser cultuado têm que ser superexposto.

Um passo para além da necessidade de publicidade, o valor do objeto artístico permanece igual ao de gerações passadas. A memória humana não é preservada nos objetos que seduzem instantaneamente. Mas naqueles em que se percebe o valor do trabalho e da luta pela preservação da humanidade. No caso da literatura, o trabalho com a linguagem e a língua: novas percepções, conexões, saltos criativos. Por isso, escritores como Valêncio Xavier não são esquecidos. O sol brilhou em seu signo astral, até sua luz sumir no horizonte. Esse tímido raio de sol será visto por anos.