Tag: escritora

  • Livro: A Mulher Calada: Sylvia Plath, Ted Hughes e os limites da Biografia — Janet Malcolm

    Livro: A Mulher Calada: Sylvia Plath, Ted Hughes e os limites da Biografia — Janet Malcolm

    A incrív­el tol­erân­cia do leitor (que ele não esten­de­ria a um romance mal escrito como a maior parte das biografias) só faz sen­ti­do se for enten­di­da como uma espé­cie de cumpli­ci­dade entre ele e o bió­grafo numa ativi­dade exci­tante e proibi­da: atrav­es­sar o corre­dor na pon­ta dos pés, parar diante da por­ta do quar­to e espi­ar pelo bura­co da fechadu­ra (p.16)

    Sylvia Plath (1932–1963), foi uma escrito­ra amer­i­cana rad­i­ca­da na Inglater­ra nos anos 50 e uma figu­ra fem­i­ni­na bas­tante forte. Ficou mais con­heci­da por sua poe­sia del­i­ca­da, intimista e em boa parte dela som­bria, dota­da de resquí­cios de uma depressão que aparente­mente era intrin­se­ca à per­son­al­i­dade da escrito­ra. Todas essas car­ac­terís­ti­cas são apre­sen­tadas em A Mul­her Cal­a­da: Sylvia Plath, Ted Hugh­es e os lim­ites da Biografia (reim­pressão de 2012, Com­pan­hia das Letras, Tradução de Ser­gio Flaks­man), uma pro­pos­ta ousa­da de análise biográ­fi­ca da jor­nal­ista Janet Malcolm. 

    Em 1961, Sylvia Plath escreveu A Redo­ma de Vidro, o úni­co romance de sua car­reira e de tom alta­mente con­fes­sion­al. A per­son­agem Esther é uma Sylvia mais cora­josa mas igual­mente sen­sív­el, que ao sofr­er decepções nâo vê out­ra saí­da além da morte. Plath deixou todos ao seu redor assus­ta­dos e temerosos pelas descrições do romance. Já para ela era como um gri­to do que vin­ha enfrentan­do des­de a ado­lescên­cia e a total não aceitação do pos­sív­el com­por­ta­men­to promis­cuo de Hugh­es. Mes­mo ten­do cresci­do numa época de lib­er­tação fem­i­ni­na, muito de uma mul­her tem­pera­men­tal e obses­si­va se escon­dia na pele da moça loira, sim­páti­ca da capa do livro. E é essa Plath que Janet con­strói, uma mul­her comum, forte e tam­bém áci­da, ciu­men­ta e desagradáv­el com um tem­pera­men­to deci­di­do, inclu­sive com a cor­agem de acabar com a própria vida.

    A jor­nal­ista se propõe a ir além de uma biografia comum, já que a vida de Sylvia não era novi­dade para ninguém do meio literário, seja em out­ras ten­ta­ti­vas biográ­fi­cas ou espec­u­lações. Ela ques­tiona o sen­ti­do do gênero, qual o papel de quem o escreve e a importân­cia de man­ter intim­i­dade com o leitor. Mal­colm se atem no perío­do em que Plath con­hece o poeta Ted Hugh­es, quan­do deu ini­cio à uma das relações mais con­tro­ver­sas e polêmi­cas de pares no meio literário, até o sui­cidio em 1963. 

    Janet Mal­colm
    O títu­lo de mul­her cal­a­da é jus­ta­mente pelo grande número de espec­u­lações sobre os fatos e mitos no entorno de Sylvia Plath con­struí­dos des­de sua morte. O casa­men­to com Hugh­es, a relação com a mãe e ami­gos são expostas pela infinidade de car­tas tro­cadas, ver­dadeiros fós­seis de sen­ti­men­tos da época e pos­síveis fatores de recon­sti­tu­ição. Essas mis­si­vas e os diários, que a poet­i­sa escrevia tan­to quan­to res­pi­ra­va, são os maiores ali­men­ta­dores para as biografias já escritas sobre a vida de Plath. A jor­nal­ista ques­tiona e dá sua opinião sobre cada uma das pub­li­cações feitas ao lon­go das décadas que seguiram e o faz com­para­n­do as obras com o próprio mate­r­i­al col­hi­do, uma espé­cie de inves­ti­gação insti­gante, quase em rit­mo detetivesco.

    Sylvia Plath
    E como em uma boa história de sus­pense, a per­son­agem oscilante de Sylvia gan­ha ares de mocin­ha quan­do o assun­to é a família Hugh­es, que durante muito tem­po deteve os dire­itos autorais da escrito­ra. Não bas­tassem as histórias no entorno da figu­ra de Ted Hugh­es, sua irmã Olwyn se apre­sen­ta como a mul­her total­mente indisponív­el e mal humora­da quan­do se tra­ta de fofo­cas sobre sua família. A figu­ra dos Hugh­es con­tra­ce­na com a de Plath, pois depois da morte de Sylvia foram eles os por­ta-vozes para qual­quer tra­bal­ho que envolvesse a figu­ra da escritora.

    A Mul­her Cal­a­da é um desafio ao leitor, o colo­ca como pas­sageiro das via­gens, encon­tros e leituras de car­tas que Janet faz. O tom poli­cial que a jor­nal­ista tra­ta dos fatos colo­ca o leitor na dúvi­da se há algum mocin­ho ou ban­di­do na história mitológ­i­ca de Sylvia Plath, sua mãe e a família Hugh­es. Mal­colm brin­ca com a mais inqui­etante questão literária que é o lim­ite da ficção e real­i­dade. Usan­do a seu favor os fatos e provas escritas do que pode ter acon­te­ci­do, a jor­nal­ista mon­ta toda uma teia com lin­guagem fic­cional para que o leitor pos­sa ape­nas vis­lum­brar a figu­ra da poeta cal­a­da e assim poder decidir em que voz pref­ere confiar.

    Filme

    Para quem se inter­esse por uma fac­eta de Plath, há uma cinebi­ografia inti­t­u­la­da de Sylvia (2003), dirigi­da por Chris­tine Jeffs e inter­pre­ta­da por Gwyneth Pal­trow e Daniel Craig como Ted Hugh­es. O lon­ga mostra clara­mente a vitimiza­ção da escrito­ra per­ante a vul­ner­a­bil­i­dade da relação com o poeta, pare­cen­do que Sylvia era ape­nas uma mul­her com tendên­cias sui­ci­das à beira de seu próprio precipício.

  • Livro: A Via Crucis do Corpo — Clarice Lispector

    Livro: A Via Crucis do Corpo — Clarice Lispector

    Quan­do Álvaro Pacheco encomen­dou à Clarice Lispec­tor três histórias talvez nem imag­i­nasse o peri­go que cor­ria em faz­er um pedi­do desse a uma escrito­ra que sem­pre fora con­heci­da pelo seu impul­so — e pro­fun­di­dade — na nar­ra­ti­va. Mas por out­ro lado, o pedi­do de Pacheco deu origem à reunião de con­tos de A Via Cru­cis do Cor­po (Edi­to­ra Roc­co, 1998), um dos últi­mos tra­bal­hos da escrito­ra que fazia con­tos como se relatasse cenas de uma voyeur sagaz, que entende o ínti­mo da natureza humana.

    Clarice deixa claro já no pre­fá­cio de A Via Cru­cis do Cor­po que talvez todas aque­las histórias ela mes­ma ten­ha vivi­do ou que, ain­da, sejam meras semel­hanças com a real­i­dade. Assim era a lit­er­atu­ra caóti­ca de Lispec­tor, um oscilar de real e fan­ta­sioso, sem soar ina­cred­itáv­el. O cor­po é o grande per­son­agem do livro, há uma lin­ha tênue que liga uma a uma das nar­ra­ti­vas e o cor­po é vis­to de um pris­ma, além de regras e moral­is­mos. A cada nar­ra­ti­va o leitor é apre­sen­ta­do a uma noção de cor­po difer­ente, a descober­ta desse instru­men­to que car­reg­amos é vivi­da das mais difer­entes maneiras, des­de da descober­ta da mas­tur­bação por uma mul­her na ter­ceira idade até a lib­er­tação — na min­ha visão, poéti­ca — das amar­ras do moral­is­mo de uma mul­her religiosa.

    A auto­ra não poupa per­sonas em A Via Cru­cis do Cor­po, expõe out­ros e inclu­sive a si mes­ma. Em alguns dos con­tos temos a impressão que é a própria auto­ra está falan­do, nos rev­e­lando alguns seg­re­dos seus. Acred­i­to isso ser um dos trun­fos mais grandiosos na escri­ta dela, essa per­cepção do ser, do com­preen­der e dialog­ar os devaneios humanos como se ela fos­se a maior con­hece­do­ra da causa. 

    Difer­ente do que fez, por exem­p­lo, em A Paixão segun­do G.H, em que nar­ra uma descober­ta em primeira pes­soa, cheia de nuances psi­cológi­cos, em A Via Cru­cis do Cor­po os per­son­agens são sem­pre con­tex­tu­al­iza­dos crian­do laços com o leitor. Todos con­hece­mos pes­soas que lem­brem algum per­son­agem de Clarice Lispec­tor, as vezes somos nós mes­mos recon­heci­dos no espel­ho que a escrito­ra con­seguia cri­ar com sua escrita.

    A Via Cru­cis do Cor­po é uma ousa­dia pen­den­do para o eróti­co sem ser explici­ta. Éroti­co pela pureza em que o cor­po é per­son­agem de cada breve história que resul­ta num praz­er próprio. O cor­po é o instru­men­to e os per­son­agens nomea­d­os são somente por­ta­dores dele, se dan­do con­ta de sua existên­cia essen­cial. Um livro para rel­er, se encon­trar, se enten­der. Clarice é sem­pre auto-conhecimento.

  • “Escrever é ficar sozinha” — A escritora Marina Colasanti em Curitiba

    Escrever é ficar sozinha” — A escritora Marina Colasanti em Curitiba

    nada na mangaNo dia 17 de março, a escrito­ra Mari­na Colas­an­ti encon­trou com mais de cem cri­anças, de 5 a 10 anos, na Bib­liote­ca Públi­ca do Paraná em Curiti­ba. Foi boni­to ver a platéia de cri­anças, falan­do, rindo, brin­can­do e aten­ta. Mari­na, aos 73 anos, con­segue falar a lín­gua delas. Não à toa, é auto­ra de mais de 50 livros, muitas histórias de fadas. Out­ras, crôni­cas, reporta­gens, poe­sia para cri­anças. Todos pare­cem ter em comum a ideia de ser histórias para cri­anças de todas as idades.

    Durante o bate-papo, Mari­na Colas­an­ti ves­tia um tern­in­ho com saia e ficou em pé, mãos cruzadas à frente, para falar com as cri­anças. Uma pos­tu­ra boni­ta, despo­ja­da, de desarme e encan­to. Falou um pouco sobre ela, incluin­do a frase do títu­lo. E que escritor é profis­são de gente soz­in­ha, mas que nun­ca está só.

    Lem­bro o primeiro livro que li de Mari­na Colas­an­ti, Nada na Man­ga. Desco­bri na Bib­liote­ca Públi­ca, orgul­hosa. Descon­heci­da pra mim, ela já escrevia crôni­cas para o Jor­nal do Brasil e tra­bal­ha­va na Revista Nova. Ain­da não sabia que era casa­da com o poeta Affon­so Romano de Sant´anna. Pelas crôni­cas, con­heci as fil­has, Alessan­dra e Fabiana.

    Fique feliz em ler as crôni­cas de Mari­na. Que falavam sobre a solidão. Eu, aos 15 anos, me iden­ti­fi­ca­va com aque­la mul­her soz­in­ha, casa­da e com 2 fil­has. E me ini­ci­a­va na arte de ser sozinha.

    Até hoje lem­bro as primeiras leituras. E tam­bém fiquei sat­is­fei­ta em encon­trar Mari­na Colas­an­ti, ao vivo, sem falar uma palavra com ela. Por que ela gos­ta de escr­ev­er e ensi­na que ser soz­in­ha pode ser diver­tido. Ler é uma aven­tu­ra, um encon­tro com a alma.

    Durante anos busquei quem lesse os mes­mos livros que eu. Algu­mas vezes ain­da me ilu­do quan­do encon­tro um leitor. Me emo­ciono, quero pro­lon­gar a relação. Mas sei que não con­seguirei deixar de ser soz­in­ha. Cada um segue seu cam­in­ho. Se tiv­er tal­en­to e per­sistên­cia, pub­li­cará um livro para com­par­til­har suas leituras em público.

    O Dalai Lama diz que exis­tem seis mil­hões de religiões no plan­e­ta para seis mil­hões de almas. Pou­cas seguirão soz­in­has, escritoras ou leitoras. Mari­na Colas­an­ti sabe o que é a lit­er­atu­ra. A feli­ci­dade que provo­ca, e não é pre­ciso sair de seu silên­cio. Tam­bém sabe que é bom com­par­til­har a alma. Por isto, talvez, a pos­tu­ra de meni­na leviana e com­por­ta­da, diante dum auditório reple­to de bor­bo­le­tas coloridas.

    Tex­to pub­li­ca­do tam­bém no blog microp­o­lis, da própria auto­ra Mar­il­ia Kub­o­ta.