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  • Aniversário de 5 anos | Editorial

    Aniversário de 5 anos | Editorial

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    Com­par­til­har. Esta é a palavra que ini­ciou uma série de ações, pesquisas e aven­turas que fiz­er­am sur­gir e abaste­cer o inter­ro­gAção durante estes 5 anos de vida. De uma peque­na faís­ca ini­ci­a­da por um blog pes­soal, hoje somos um por­tal cul­tur­al com uma equipe de 6 pes­soas fixas, espal­ha­dos por qua­tro cidades do Brasil e uma nos EUA, e com con­teú­do de mais de out­ros 15 colab­o­radores. E foi por causa de peque­nas e grandes ações que cada um deles tomou, que o inter­ro­gAção é o que ele é hoje.

    Sou pro­fun­da­mente agrade­ci­do a Mara, que é mais que par­ceira no movi­men­to catár­ti­co de ten­tar faz­er o impos­sív­el e rev­olu­cionar a pro­dução de con­teú­do cul­tur­al, a Marília, que está sem­pre res­pi­ran­do poe­sia e pos­sui um olhar incrív­el, ao Rafael, que é um furacão na pro­dução dos mais diver­sos tex­tos e entre­vis­tas, ao Aris­tides, que está sem­pre com­par­til­han­do suas aven­turas pelos mares da con­tra­cul­tura, ao Lau­ro, por dis­sem­i­nar que a arte é inevitáv­el, a Déb­o­ra, por sua visão afi­a­da e certeira, ao Faw, por acred­i­tar e colab­o­rar na con­strução de novos cam­in­hos, e a Car­ol, por aju­dar a espal­har a nos­sa paixão. Con­sidero todos vocês mais que impor­tantes com­pan­heiros nes­sa jor­na­da, mas ver­dadeiros ami­gos, daque­les que con­ta­mos nos dedos das mãos.

    Alguns deles tam­bém tem o que falar dessa jor­na­da, segue abaixo seus depoimentos:

    Uma das coisas que eu ten­ho apren­di­do com a vida é que o entu­si­as­mo nos faz nave­g­ar em águas pro­fun­das, sub­ter­râneas, abis­sais. Esse é o sen­ti­men­to que ten­ho exper­i­men­ta­do nestes 3 anos em que faço parte do interrogAção.

    Com as imer­sões que faço por meio do tra­bal­ho que desen­volve­mos no site – e através das con­ver­sas que ten­ho com o Daniel, edi­tor-chefe, nas reuniões de fechamen­to de pau­ta e de edição, con­tin­uo man­ten­do meu entu­si­as­mo vivo, flame­jante, res­pi­ran­do min­has três palavras mág­i­cas — son­ho, galáx­ia e saudade.

    No inter­ro­gAção, nós son­hamos em viv­er pela e para a cul­tura; não achamos que a galáx­ia é o lim­ite e man­te­mos a saudade do que ain­da não vive­mos como ele­men­to de pul­são. É essa crença em paixões avas­sal­ado­ras, no poder dos livros, na magia da músi­ca e na imer­são cul­tur­al que eu quero con­tin­uar des­per­tan­do no meu coração, na min­ha mente e no meu espíri­to. E tudo isso eu ten­ho encon­tra­do em dobro no interrogAção.

    Obri­ga­da a quem me indi­cou e a quem abraçou a causa ao meu lado e ao lado do Daniel – a quem chamo de mel­hor ami­go. Eu sem­pre leio livros ou ouço músi­ca para son­har, para ser trans­porta­da den­tro de uma visão nova, de uma partícu­la de vida espe­cial. Obri­ga­da por isso e muito mais, inter­ro­ga! Parabéns!


    perfil-maraMara Vanes­sa Torres
    Edi­to­ra-Exec­u­ti­va

    Min­ha relação com o site inter­ro­gAção é de pura afe­tivi­dade. É uma equipe jovem, apaixon­a­da por cul­tura e artes, que em vez de seguir regras e padrões, procu­ra desco­brir ou cri­ar sua iden­ti­dade, seu espaço.

    Escr­ev­er para o site inter­ro­gAção é uma exper­iên­cia inter­es­sante. Estim­u­la a orga­ni­zar a escri­ta e a dialog­ar com a lit­er­atu­ra con­tem­porânea. Nun­ca tive méto­do para escr­ev­er, para mim a lit­er­atu­ra e a poe­sia são neces­si­dades ínti­mas, tan­to de leitu­ra quan­to de com­posição. Pub­licar no site per­mite com­par­til­har paixões e dialog­ar com o admiráv­el mun­do novo em que vivemos.

    perfil-mariliaMar­il­ia Kubota
    Reda­to­ra

    O inter­ro­gAção é o cam­po livre da expressão e do apro­fun­da­men­to do int­elec­to. É nele que encon­tramos textos/artigos/crônicas/dossiês que nos per­mitem ir além do con­hec­i­men­to. É o atal­ho para a sabedoria.

    Foi o inter­ro­gAção que me per­mi­tiu explo­rar áreas e poten­cial­i­dades que até então só vis­lum­bra­va em um hor­i­zonte dis­tante. A parce­ria está no começo. Em breve ire­mos lançar o ‘Dos­siê Musas da Boca’, solid­i­f­i­can­do essa parceria.

    Foi tam­bém graças ao inter­ro­gAção que tive a opor­tu­nidade de con­hecer dois ami­gos que levarei pra sem­pre: Daniel Koss­mann e Mara Vanes­sa Torres.

    perfil-rafaelRafael Spaca
    Reda­tor

    Mas não vamos parar a fes­ta por aí! Para comem­o­rar esta meia déca­da de mui­ta paixão pela cul­tura, ire­mos lançar durante o mês de março uma nova ver­são do site, total­mente foca­da na exper­iên­cia da leitu­ra, novas seções de con­teú­do e várias out­ras novi­dades. Fiquem aten­tos aos anún­cios neste edi­to­r­i­al e nas nos­sas redes sociais.

    Para finalizar, que­ria tam­bém agrade­cer a todos os nos­sos leitores, par­ceiros e apoiadores, por acred­itarem e aju­darem a man­ter essa chama do inter­ro­gAção ace­sa, que é ali­men­ta­da por muito suor, tesão e sonhos.

    Obri­ga­do!!!

  • Três Dedos: Um Escândalo Animado (2009), de Rich Koslowski | HQ

    Três Dedos: Um Escândalo Animado (2009), de Rich Koslowski | HQ

    tres-dedos-um-escandalo-animado-2009-de-rich-koslowski-hqQuan­do éramos cri­anças, cor­ríamos para o sofá (ou cadeira) com o intu­ito de assi­s­tir aos desen­hos ani­ma­dos que envolvi­am per­son­agens-ani­mais, tais como Taz, Per­na­lon­ga, Tom, Jer­ry, Mick­ey, entre out­ros. Mas o que não sabíamos aca­ba de ser rev­e­la­do na obra “Três Dedos: Um escân­da­lo Ani­ma­do” (2009), de Rich Koslows­ki.

    O que muitos críti­cos acusam como um tra­bal­ho vazio ou uma “leitu­ra par­o­dís­ti­ca do mun­do encan­ta­do dos desen­hos” reflete uma ten­ta­ti­va para silen­ciar a gravi­dade no inte­ri­or do escân­da­lo expos­to neste livro.

    Em for­ma de HQ-Doc­u­men­tário, Rich inves­ti­ga os basti­dores da indús­tria cin­e­matográ­fi­ca hol­ly­wood­i­ana através de um lev­an­ta­men­to detal­ha­do que nos mostra seu surg­i­men­to, des­de o fim do cin­e­ma prim­i­ti­vo nos Esta­dos Unidos.

    Nesse con­tex­to, o leitor con­hece a vida do cineas­ta Dizzy Wal­ters, fun­dador do “cin­e­ma ani­ma­do” oci­den­tal. Com uma tra­jetória de vida mar­ca­da por crises e suces­sos, Rich apon­ta que o grande difer­en­cial de Dizzy deu-se na cor­agem de reti­rar do sub­mun­do, os artis­tas – que, por serem “desen­hos ani­ma­dos” — eram demo­niza­dos pela sociedade tradi­cional­ista norte-americana.

    Rich Koslowski
    Rich Koslows­ki

    Viven­do uma fase som­bria, “ele começou a fre­qüen­tar partes cada vez mais perigosas e pouco recomen­dadas da cidade, até que final­mente, uma noite, encon­trou-se vagan­do (…) pela ‘Ani­malân­dia’” e con­heceu – tocan­do numa boate escon­di­da — o rat­in­ho Rick­ey”. Esse encon­tro muda toda a história do cinema.

    O tal­en­to e caris­ma de Rick­ey no pal­co fez Dizzy tomar uma ati­tude arrisca­da: levar para as telas os “ani­ma­dos”, mes­mo cor­ren­do o risco de perder sua dig­nidade, pois nes­sa época, ess­es bich­in­hos sofri­am bas­tante pre­con­ceito, viven­do na mar­gin­al­i­dade e esque­ci­dos pelo poder público.

    Ser um “ani­ma­do” era noci­vo, repug­nante e assus­ta­dor. A sociedade com­pos­ta pelos humanos excluiu a raça ani­ma­da do con­vívio social e a jogou — sem o mín­i­mo de cidada­nia — nos bair­ros per­iféri­cos, no qual muitos deles vivi­am da pros­ti­tu­ição, trá­fi­co de dro­gas e ani­mação em fes­tas infan­tis, onde as cri­anças con­tratavam os “ani­ma­dos” para vio­len­tá-los em orgias envol­ven­do recheio de chi­clete sin­téti­co, refrig­er­ante com alto teor de gás e brigadeiros industriais.

    O risco em tornar um “ani­ma­do” ícone pop era alto, mas Dizzy Wal­ters investiu todo seu din­heiro no filme “Rick­ey na Fer­rovia”. Sur­preen­den­te­mente, o suces­so foi ime­di­a­to! Mes­mo com todo o ceti­cis­mo enraiza­do na críti­ca de cin­e­ma espe­cial­iza­da, as plateias humanas acla­mavam o filme como “rev­olu­cionário”.

    Rich Koslows­ki afir­ma que:

    Rap­i­da­mente, todos os grandes estú­dios de cin­e­ma começaram a pro­duzir filmes estre­la­dos por atores ani­ma­dos. Seis meses após a estréia de ‘Rick­ey na Fer­rovia’, qua­tro dos maiores estú­dios lançari­am pro­duções estre­ladas ape­nas por elen­cos de atores animados.

    Assim, a indús­tria cin­e­matográ­fi­ca de ani­mação pro­move uma avalanche de filmes mar­ca­dos pelo fra­cas­so de bil­hete­ria. Por algum moti­vo descon­heci­do, o públi­co não respon­dia pos­i­ti­va­mente ao lança­men­to dos novos filmes que sur­gi­ram após o “fenô­meno Rickey”.

    O autor entre­vista (entre ex-atores e teste­munhos da época) Hans Wurstmacher:

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    Enquan­to os filmes ani­ma­dos não estre­la­dos por Rick­ey causavam pre­juí­zos aos atrav­es­sadores, pro­du­tores e exibidores, a fama de Dizzy e seu par­ceiro lotavam as capas de revista, jor­ran­do din­heiro por todos os lados!

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    A alta cúpu­la do setor de ani­mação em Hol­ly­wood estran­hou como Dizzy e Rick­ey tornaram-se, do dia para a noite, os novos mag­natas do cin­e­ma. Algo erra­do esta­va acon­te­cen­do nos cír­cu­los inter­nos do setor.

    O suces­so de Rick­ey aumen­ta­va a cada filme real­iza­do, mas para atin­gir a fama ime­di­a­ta os artis­tas sem­pre pagam um alto preço.

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    Até o ano de 1946, ape­nas os filmes da dupla pros­per­avam, fazen­do Rick­ey tornar-se o maior super-astro ani­ma­do de todos os tem­pos, o que o lev­ou a casar-se com uma humana! A união afe­ti­va com Rosa Bel­mont pro­moveu uma grande dis­cussão étni­ca nos anos 40 nos Esta­dos Unidos: Humanos podem unir-se a Ani­ma­dos? Mes­mo com a fúria do públi­co con­ser­vador norte-amer­i­cano, sem dúvi­da, Rick­ey e Rosa que­braram os tabus em torno do amor entre seres tão distintos.

    A vida de Rick­ey e Dizzy esta­va no seu mel­hor momen­to, até que os seg­re­dos sobre o Rit­u­al são rev­e­la­dos à impren­sa a par­tir de uma denún­cia anôn­i­ma real­iza­da em 1948, que trouxe à tona um dos­siê fotográ­fi­co respon­sáv­el pela des­graça da car­reira de ambos. As ima­gens con­fir­mam: o Rit­u­al é uma ter­rív­el realidade.

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    A par­tir das ima­gens expostas por Rich, “Três Dedos” pro­move um debate com ex-atores ani­ma­dos fra­cas­sa­dos para com­preen­der a pos­sív­el lig­ação dos per­son­agens cen­trais com o escân­da­lo envol­ven­do o Ritual.

    Seria essas práti­cas macabras que o levaram à fama abso­lu­ta? É a par­tir des­ta fór­mu­la bizarra que os desen­hos ani­ma­dos con­seguem hip­no­ti­zar mil­hares de cri­anças atual­mente? Seria o “hor­ror” a palavra de ordem nas ani­mações que for­maram ger­ações de home­ns e mulheres?

    Numa rara aparição à Rich Koslows­ki, Rick­ey polemiza:

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    Comen­tários bom­bás­ti­cos bus­cam ques­tionar a indús­tria cin­e­matográ­fi­ca e avaliar o raio‑X do maior escân­da­lo da cul­tura pop nos anos 40.

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    Quem lem­bra do Pato Daniel? Engas­guin­ho? Ton­to? Liu Liu? Rapid­in­ho Rodriguez? Gafan­ho­to Can­tante? Per­nalou­ca? Frei­drich Von Gatze? Mil­lie Mar­su­pi­al? Pato Nil­do? Anti­gos grandes astros da ani­mação que hoje vivem em condições precárias, na maio­r­ia dos casos venden­do-se à indús­tria pornográ­fi­ca lig­a­da à cat­e­go­ria Zoo-She­male-Gag­fac­tor ou tra­bal­han­do nas zonas boêmias da Animalândia.

    A reper­cussão em torno do Rit­u­al pro­moveu ataques de artis­tas e políti­cos famosos (como Mar­i­lyn Mon­roe, o senador Theodore Iver­son, Mar­tin Luther King e J. F. Kennedy), que “se lev­an­taram con­tra o abu­so e trata­men­to ruim dado aos ani­ma­dos”. Poucos meses após a man­i­fes­tação de apoio aos ani­ma­dos, os mes­mo críti­cos que acusavam a indús­tria hol­ly­wood­i­ana por tais crimes sofr­eram trági­cos “aci­dentes de per­cur­so” até hoje inex­plicáveis. Have­ria algu­ma lig­ação entre essas mortes e o Ritual?

    Per­nalou­ca, após ser ques­tion­a­do por Rich sobre sua pos­sív­el lig­ação com rit­u­al, reage de for­ma surpreendente:

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    Desse modo, “Três Dedos” apre­sen­ta aos leitores o proces­so de con­strução dos mitos ani­ma­dos da TV e cin­e­ma. Anal­isa como a indús­tria da ani­mação lucra mil­hões de dólares, investin­do em filmes e séries tele­vi­si­vas infan­tis que movi­men­tam um mer­ca­do macabro, obri­g­an­do os artis­tas a se sub­me­terem ao Rit­u­al em tro­ca da fama, luxo e recon­hec­i­men­to de públi­co. Quan­do os pro­du­tores lucram tudo que podem, os jogam no esquec­i­men­to absoluto.

    O que está por trás do uni­ver­so dos filmes infan­tis? Até que pon­to nos­sos fil­hos devem con­sumir tais con­teú­dos, mar­ca­dos por uma atmos­fera de hor­ror e sub­mis­são? “Três Dedos” é um livro que pre­cisa ser lido e divul­ga­do ime­di­ata­mente nas esco­las, crech­es e aos pais mais cuida­dosos, como um aler­ta moral sobre a maldição envol­ven­do os desen­hos animados.

  • Dogville (2003): Imaginário e símbolos de apreensão do real | Análise

    Dogville (2003): Imaginário e símbolos de apreensão do real | Análise

    dogville-analise-posterE a rachadu­ra na xícara de chá abre uma tril­ha para a ter­ra dos mor­tos”, escreveu o poeta W.H Auden. Partin­do dessa imagem, percebe­mos uma alame­da silen­ciosa e intrin­ca­da de caos, dúvi­das e inse­gu­ranças invadin­do o rotineiro e con­fortáv­el espaço social, per­son­ifi­ca­do pela figu­ra de uma xícara de chá. Um tipo de invasão sem vol­ta, pois pen­e­tra no esta­do de espíri­to de um grupo, nação ou comu­nidade, desnudan­do sim­u­lações e fazen­do cair más­caras. Esse é o cenário esboça­do pelo filme Dogville (2003), dirigi­do pelo dire­tor dina­mar­quês Lars von Tri­er, e cuja temáti­ca será obje­to de mapea­men­to, reflexão e análise no que con­cerne ao imag­inário mate­r­i­al da cidade e dos per­son­agens fictícios.

    A história do lon­ga-metragem se pas­sa em uma vila chama­da Dogville, habita­da por pes­soas sim­ples, com anseios modestos e sem per­spec­ti­vas de mudança. Situ­a­do entre mon­tan­has, o vilare­jo tem pouquís­si­mo con­ta­to com o mun­do exte­ri­or, isolan­do os moradores aos lim­ites do lugar. A roti­na mecan­iza­da de Dogville reflete em uma comu­nidade aco­moda­da, sem capaci­dade cria­ti­va e com­ple­ta­mente entor­peci­da. Um de seus moradores, o aspi­rante a escritor Tom Edi­son (inter­pre­ta­do pelo ator Paul Bet­tany), avo­ca para si a autori­dade de “líder-comu­nitário” e ten­ta inserir novas ideias e dis­cussões no seio da comunidade.

    Em um dado momen­to, a empoeira­da vila é toma­da de assalto pela pre­sença de Grace (vivi­da pela atriz Nicole Kid­man), forasteira que chega furtiva­mente à Dogville. Tom é o primeiro a ter con­ta­to com Grace, interce­den­do por ela per­ante os out­ros mem­bros do grupo. Depois de uma assem­bleia, fica deci­di­do que Grace terá duas sem­anas para con­quis­tar a con­fi­ança do povoa­do e, sug­es­tion­a­da por Tom, a forasteira decide ofer­e­cer sua aju­da aos habitantes.

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    A “rachadu­ra na xícara”, ini­ci­a­da com o aparec­i­men­to de Grace, se estende durante toda a sequên­cia do filme, divi­di­do em nove capí­tu­los. No decor­rer da tra­ma, mudanças sub­stan­ci­ais acon­te­cem no pequeno vilare­jo e o ar de feli­ci­dade idíli­ca dá lugar à nuvem de fumaça den­sa, fúne­bre e tene­brosa. A pop­u­lação de Dogville começa mostran­do medo e descon­fi­ança em relação à per­manên­cia de Grace na cidade, mod­i­f­i­can­do o pen­sa­men­to pouco depois, já que todos os quinze habi­tantes estavam sendo ben­e­fi­ci­a­dos pelo tra­bal­ho da forasteira. O enre­do segue até rev­e­lar a ver­dadeira face de Dogville: de ami­gos acol­he­do­res, os habi­tantes pas­sam a predadores vorazes, tratan­do Grace como obje­to, esma­gan­do sua iden­ti­dade, desumanizando‑a.

    Para enten­der como se dá a con­strução do imag­inário mate­r­i­al da cidade e de seus habi­tantes, cabe destacar a apos­ta do dire­tor Lars von Tri­er em um esti­lo cin­e­matográ­fi­co híbri­do, em que fig­u­ram ele­men­tos teatrais e literários. Com essa mis­tu­ra, as noções de real e irre­al se entre­laçam e sub­vertem os mod­e­los padrões, alteran­do tam­bém a per­cepção de ver­dadeiro e fal­so. O lon­ga-metragem apre­sen­ta car­ac­terís­ti­cas do teatro grego (insti­ga o dese­jo do espec­ta­dor pela vio­lên­cia crua), teatro do absur­do (inter­ação dos atores com obje­tos imag­inários), bem como a ausên­cia de fun­do musi­cal. Out­ro fator deci­si­vo na con­strução do filme é a uti­liza­ção de cenários desta­ca­dos no chão, mar­can­do a pre­sença de cada habi­tante no ambi­ente um do out­ro, e o uso de pare­des pre­tas (teatro caixa-pre­ta), val­orizan­do assim um for­ma­to mais intimista, volta­do à dra­mati­ci­dade e tensão.

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    A fal­ta de “dis­trações cêni­cas” per­mite que o espec­ta­dor con­cen­tre a atenção nas relações que se embaraçam e desem­baraçam na cadeia dos acon­tec­i­men­tos. Dessa for­ma, obser­va-se a con­strução de Dogville como uma cidade para­da no tem­po, víti­ma de sua própria amar­gu­ra e solidão. A cul­tura da repetição, medioc­ridade e imutabil­i­dade toma con­ta do pequeno espaço, afo­gan­do os moradores em uma espé­cie de tor­por cego. Pre­sos em ideias fixas, eles não con­seguem enx­er­gar além dos seus próprios muros, e mes­mo inte­gran­do o todo — rep­re­sen­ta­do pelo espaço comu­nitário — os mem­bros de Dogville não se recon­hecem como indivíduos.

    Os moradores per­dem a maior parte das horas do dia em suas ativi­dades cotid­i­anas, cuja úni­ca ori­en­tação vem do bada­lo monocór­dio do sino da igre­ja, admin­istra­do por uma habi­tante da vila, já que nen­hum padre jamais apare­ceu no local. Den­tre os habi­tantes, estão casais infe­lizes e apáti­cos (Chuck e Vera), pais que não sabem amar e edu­car os fil­hos; fab­ri­cantes de obje­tos e pro­du­tos sem qual­i­dade, mas que logram em cima da comu­nidade através de preços exor­bi­tantes (família Hen­son e sen­ho­ra Gin­ger); home­ns hipocon­dría­cos ou que se recusam a aceitar a enfer­mi­dade (dois extremos, rep­re­sen­ta­dos pelo ex-médi­co Thomas Edi­son, pai do autoin­ti­t­u­la­do escritor Tom, e o irascív­el cego McK­ay); além do trans­porta­dor de car­ga (Ben) que fre­quen­ta prostíbu­los e ten­ta escon­der o fato por ver­gonha, e a fax­ineira solitária e sua fil­ha deficiente.

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    Em um primeiro momen­to, a inér­cia bucóli­ca do lugar encan­ta Grace que, cansa­da de fugir de supos­ta máfia, faz tudo para per­manecer no local. Quan­do os habi­tantes de Dogville percebem o poder que exercem sobre Grace, apelando para o medo que a descon­heci­da tem de ser entregue à polí­cia ou aos mafiosos, há uma rup­tura grada­ti­va no modo de trata­men­to. De “recém-inte­grante” do espaço comu­nitário, a forasteira se trans­for­ma em escra­va físi­ca e sex­u­al, sendo explo­ra­da de todas as maneiras possíveis.

    A par­tir desse pon­to, Dogville começa a se con­struí­da como “cidade do cão”, onde pes­soas agem por instin­to ani­male­sco de poder e con­t­role, forçan­do Grace a ser um de seus obje­tos. Toda a mesquin­haria da cidade é camu­fla­da pela afir­mação medonha dos habi­tantes de que “só quer­e­mos o seu bem” ou “não gostaríamos de faz­er isso com você”, rep­re­sen­tan­do a imagem do algoz que açoi­ta e fla­gela, ale­gan­do que o faz pela graça de Deus e bem de toda a humanidade (vide a bar­bárie per­pe­tra­da pela San­ta Inquisição con­tra supos­tos hereges e o con­tín­uo mas­sacre étni­co e reli­gioso cometi­do nas ter­ras do Ori­ente Médio, por exemplo).

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    O ide­al con­ser­vador, tradi­cional­ista e paca­to da cidade camu­fla o medo da mudança que asso­la o ínti­mo dos moradores, deixan­do-os capazes de qual­quer sel­vage­ria para con­ser­var a atmos­fera inerte e o comod­is­mo. No imag­inário dos moradores de Dogville, a cidade fun­ciona per­feita­mente bem, integra­da por ideais democráti­cos e solidários de manutenção de val­ores tradi­cionais e famil­iares. Mas com a chega­da de Grace, o espec­ta­dor começa a acom­pan­har o declínio moral e social da vila; ruí­nas que estavam escon­di­das na cegueira da cidade, em sua natureza amor­fa e imutável.

    Ao pen­e­trar no nevoeiro que é a “cidade do cão”, Grace trans­for­ma-se no dedo em riste, uma espé­cie de ques­tion­a­men­to vivo às ima­gens con­struí­das sobre a vila e seus habi­tantes. As certezas de Tom Edi­son começam a ser removi­das, rev­e­lando ao próprio “escritor” que a últi­ma coisa que ele gostaria que acon­te­cesse era pas­sar por mudanças ou con­frontar sua vida. Por out­ro lado, Grace pro­va através de suas ações e reações diante de todas as bru­tal­i­dades das quais é víti­ma que “não estar mor­to não é estar vivo”, como disse o poeta e ensaís­ta E.E Cum­mings. A cria­tivi­dade e humanidade da jovem forasteira lem­bram à Dogville como a vila é peque­na em espíri­to, lim­i­ta­da geografi­ca­mente, tran­cafi­a­da em um mosaico de roti­nas, per­feita­mente adap­ta­da e esta­bi­liza­da em situ­ações que sequer con­hece ou entende.

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    Com­preen­den­do o imag­inário como a cul­tura de um grupo, percebe-se a descon­strução das ima­gens de Dogville, desnudan­do o caráter tirâni­co de pes­soas catatôni­cas, inca­pazes de lidar com rup­turas. A vila imag­inária de Lars von Tri­er é um emble­ma das grandes cidades e sua “filosofia do absur­do”, onde a indi­vid­u­al­i­dade se perde no meio de relações super­fi­ci­ais e a sede do “poder de vida e de morte” afu­gen­ta sen­ti­men­tos, crian­do hierarquias.

    Para super­ar taman­ho des­gaste, Grace faz refer­ên­cia ao esto­icis­mo e sua éti­ca do “imper­tur­báv­el, extir­pação das paixões e aceitação res­ig­na­da do des­ti­no” como for­ma de atin­gir à sabedo­ria. Dores, sofri­men­tos e infortúnios são esque­ci­dos e per­son­ifi­ca­dos na imagem de uma mul­her doce, meiga, com voz açu­cara­da e capaz de supor­tar as adver­si­dades. A con­strução dessa imagem faz refer­ên­cia a aceitação da sociedade atu­al, silen­ciosa e cati­va, sub­ju­ga­da por “poderes microscópi­cos”, expressão cun­ha­da pelo pen­sador francês Michel Fou­cault, que dom­i­nam, mar­t­i­rizam e dev­as­tam sua existência.

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    Dogville remon­ta ima­gens do nos­so quadro social, assas­si­no de indi­vid­u­al­i­dades e toma­do por mesquin­harias. Como os habi­tantes desse pequeno povoa­do esque­ci­do, ali­men­ta­mos a ideia de que somos for­ma­dos por “justiça, igual­dade e frater­nidade”, escon­den­do o ros­to ao desumanizar e estigma­ti­zar o out­ro. A car­i­catu­ra do covarde per­son­agem Tom Edi­son mostra o lado intragáv­el do medo de encar­ar inse­gu­ranças e mudanças, da sub­mis­são a uma ordem social impos­ta, do ide­al de fetiche gregário e da ação instin­ti­va, com a bus­ca da sat­is­fação de neces­si­dades físi­cas e dos próprios interesses.

    Saturno devorando seu filho
    Sat­urno devo­ran­do seu filho

    O des­fe­cho do filme, trági­co e inten­so – a exem­p­lo da dra­matur­gia gre­ga -, apre­sen­ta ima­gens dicotômi­cas e míti­cas, pre­sentes no imag­inário social. Ini­cial­mente con­ce­bi­da como Prom­e­teu, titã mitológi­co que, guia­do pelo amor aos humanos, decide ensiná-los a civ­i­liza­ção e as artes e é amaldiçoa­do por Júpiter (Zeus), sendo sev­era­mente cas­ti­ga­do, Grace vai assu­min­do a for­ma do quadro de Goya (Sat­urno devo­ran­do seu fil­ho), e engole a cidade inteira, queimando‑a e trucidando‑a.

    Dogville é for­ma­da por sím­bo­los de apreen­são do real, emble­ma de ima­gens que são trans­for­madas em pes­soas, sen­ti­men­tos, situ­ações e coisas. Os per­son­agens da “cidade do cão” são metá­foras que unem obje­tivi­dade e sub­je­tivi­dade. Refle­tir sobre o imag­inário é com­preen­der sua importân­cia na con­strução da real­i­dade e na for­mação da iden­ti­dade humana, em toda sua inqui­etação e complexidade.

  • Evento Nobre: Miguel Sanches Neto e Affonso Romano de Sant´anna

    Evento Nobre: Miguel Sanches Neto e Affonso Romano de Sant´anna

    Evento Nobre: Miguel Sanches Neto e Affonso Romano de Sant´anna

    O prin­ci­pal hom­e­nagea­do da Bien­al do Livro Paraná 2010 foi o críti­co literário Wil­son Mar­tins, fale­ci­do no iní­cio deste ano. Como fechamen­to, o últi­mo Even­to Nobre da Bien­al, inti­t­u­la­do Wil­son Mar­tins: mestre da críti­ca, foi debati­do por dois ami­gos do críti­co, os escritores Miguel Sanch­es Neto e Affon­so Romano de Sant´anna.

    Miguel Sanch­es Neto é escritor, críti­co literário em diver­sos suple­men­tos e atual­mente leciona na Uni­ver­si­dade de Pon­ta Grossa, no Paraná. Affon­so Romano de Sant´anna tam­bém é escritor, pro­fes­sor e críti­co. Ambos os escritores tiver­am uma estre­i­ta relação de amizade com o críti­co que vivia inten­sos sen­ti­men­tos de amor e ódio com a sociedade literária do Brasil.

    Wil­son Mar­tins foi autor de diver­sas obras, desta­can­do-se a História da Inteligên­cia Brasileira e a Críti­ca Literária no Brasil. Além dis­so, gan­hou alguns dos prin­ci­pais prêmios literários nacionais, como o Jabu­ti e o Prêmio Macha­do de Assis. Ele mor­reu no começo deste ano, com 88 anos, em Curiti­ba. Para saber mais sobre a vida dele, leia este pequeno resumo feito pelo jor­nal Estadão, na matéria “Morre o críti­co literário Wil­son Mar­tins”.

    Afi­nal, Wil­son Mar­tins sig­nifi­ca­va o quê para a cena literária brasileira? Affon­so Romano con­ta que seu primeiro con­ta­to com o críti­co se deu por con­ta de um tex­to que este escreveu sobre um de seus primeiros livros. Ele ini­cia o debate da Bien­al do Livro Paraná 2010 fazen­do uma breve analo­gia dizen­do que hoje esta­mos viven­do um momen­to inter­es­sante na políti­ca brasileira em que os can­didatos dão ape­nas opiniões ame­nas sobre assun­tos polêmi­cos, haven­do uma mod­er­ação de dis­cur­so. Para ele isso é comum, pois a expressão ¨ser políti­co¨ é ser par­cial, é não cor­rer riscos e jus­ta­mente era isso que Wil­son Mar­tins não fazia com os livros que chegavam em suas mãos. O escritor tam­bém afir­ma que o críti­co não poupa­va opiniões, mes­mo que muitas vezes em tom áci­do e con­tra­ditório, em relação às opiniões da mídia, fazen­do assim valer a existên­cia da críti­ca no país.

    Miguel Sanch­es Neto con­ta que já acom­pan­ha­va o tra­bal­ho do críti­co até ter a opor­tu­nidade de entre­vista-lo pela Revista Joaquim. Ele rela­ta que nesse momen­to surgiu uma grande amizade, apren­den­do a recon­hecer quan­do Wil­son não gosta­va de algu­ma obra e a lidar com seu modo de criticar. Miguel acred­i­ta que o papel do críti­co é cri­ar a sua própria ver­dade e era jus­ta­mente isso que Wil­son Mar­tins fazia, de for­ma bem humora­da. Havia mui­ta sin­ceri­dade no que escrevia, agin­do sem­pre muito inde­pen­den­te­mente tan­to da acad­e­mia como da críti­ca, que ali­men­ta­va os cânones da lit­er­atu­ra. O escritor con­ta sobre muitos momen­tos em que pôde acom­pan­har de per­to o tra­bal­ho de Wil­son, inclu­sive os boicotes que foi sofren­do ao lon­go do tem­po dev­i­do a sua impar­cial­i­dade, que não era acei­ta pelos suple­men­tos em que escrevia.

    Os escritores, na Bien­al do Livro Paraná 2010, con­tam que real­mente o críti­co não aceita­va sug­estões sobre quem, ou o quê, dev­e­ria escr­ev­er. Ele rece­bia diari­a­mente inúmeros vol­umes de novos autores e de obras descon­heci­das as quais ele dava cer­ta pri­or­i­dade, dizen­do que o praz­er de um críti­co esta­va em desco­brir um grande autor e uma grande obra. Os con­vi­da­dos tam­bém ressaltam a fal­ta que há hoje de um críti­co, e até resen­hista, que sai­ba olhar com olhos ávi­dos para o que se pro­duz no con­tem­porâ­neo, assim como as obras que cir­cu­lam no além-mídia, pois se aca­ba por faz­er ape­nas uma reportagem infor­ma­ti­va e não uma pro­dução de con­hec­i­men­to críti­co, necessário para a for­mação de leitores.

    A importân­cia do tra­bal­ho de Wil­son Mar­tins é car­ac­ter­i­za­da como fun­da­men­tal. Miguel Sanch­es Neto afir­ma que as uni­ver­si­dades devem dar mais atenção ao tra­bal­ho do autor, prin­ci­pal­mente para se levar em con­ta que um bom críti­co deve ter uma bagagem cul­tur­al de alto nív­el e ser capaz de ler os mais diver­sos genêros, pois nem tudo que a mídia apre­sen­ta deve ser con­sum­i­do. Den­tro dos comen­tários sobre a neces­si­dade de se ler o críti­co no meio acadêmi­co, Affon­so Romano de Sant´anna cita situ­ações como a da pro­fes­so­ra Flo­ra Sussekind, que há pouco tem­po atrás criti­cou a obra de Wil­son Mar­tins e seus seguidores, acu­san­do que a críti­ca havia mor­ri­do há muito tem­po, deixan­do clara a posição beletrista e canôni­ca que os cur­sos de Letras man­tém ain­da hoje.

    O assun­to do debate foi fun­da­men­ta­do, prin­ci­pal­mente, com a atu­al situ­ação da críti­ca no país e de que for­ma a mídia tra­bal­ha para man­ter um espaço na ampli­ação da lit­er­atu­ra em revis­tas, jor­nais, sites e etc. Há um descon­tenta­men­to enorme por con­ta da par­cial­i­dade exager­a­da de quem escreve, ou ain­da, com o ideário acadêmi­co de que a lit­er­atu­ra só era ver­dadeira no pas­sa­do, val­orizan­do os chama­dos cânones. Essas ati­tudes se afir­mam como uma grande ilusão pois a pro­lif­er­ação de feiras, bien­ais, jor­nadas literárias e etc com­pro­vam que os con­tem­porâ­neos tam­bém querem dis­cu­tir o que é pro­duzi­do hoje e a Bien­al do Livro Paraná 2010 foi um ter­reno rico para isso.

    O inter­ro­gAção gravou em áudio todo esse bate-papo e se você quis­er pode escu­tar aqui pelo site, logo abaixo, ou baixar para o sue com­puta­dor e ouvir onde preferir.

    Ouça a palestra com­ple­ta: (clique no link abaixo para ouvir ou faça o down­load)

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