Compartilhar. Esta é a palavra que iniciou uma série de ações, pesquisas e aventuras que fizeram surgir e abastecer o interrogAção durante estes 5 anos de vida. De uma pequena faísca iniciada por um blog pessoal, hoje somos um portal cultural com uma equipe de 6 pessoas fixas, espalhados por quatro cidades do Brasil e uma nos EUA, e com conteúdo de mais de outros 15 colaboradores. E foi por causa de pequenas e grandes ações que cada um deles tomou, que o interrogAção é o que ele é hoje.
Sou profundamente agradecido a Mara, que é mais que parceira no movimento catártico de tentar fazer o impossível e revolucionar a produção de conteúdo cultural, a Marília, que está sempre respirando poesia e possui um olhar incrível, ao Rafael, que é um furacão na produção dos mais diversos textos e entrevistas, ao Aristides, que está sempre compartilhando suas aventuras pelos mares da contracultura, ao Lauro, por disseminar que a arte é inevitável, a Débora, por sua visão afiada e certeira, ao Faw, por acreditar e colaborar na construção de novos caminhos, e a Carol, por ajudar a espalhar a nossa paixão. Considero todos vocês mais que importantes companheiros nessa jornada, mas verdadeiros amigos, daqueles que contamos nos dedos das mãos.
Alguns deles também tem o que falar dessa jornada, segue abaixo seus depoimentos:
Uma das coisas que eu tenho aprendido com a vida é que o entusiasmo nos faz navegar em águas profundas, subterrâneas, abissais. Esse é o sentimento que tenho experimentado nestes 3 anos em que faço parte do interrogAção.
Com as imersões que faço por meio do trabalho que desenvolvemos no site – e através das conversas que tenho com o Daniel, editor-chefe, nas reuniões de fechamento de pauta e de edição, continuo mantendo meu entusiasmo vivo, flamejante, respirando minhas três palavras mágicas — sonho, galáxia e saudade.
No interrogAção, nós sonhamos em viver pela e para a cultura; não achamos que a galáxia é o limite e mantemos a saudade do que ainda não vivemos como elemento de pulsão. É essa crença em paixões avassaladoras, no poder dos livros, na magia da música e na imersão cultural que eu quero continuar despertando no meu coração, na minha mente e no meu espírito. E tudo isso eu tenho encontrado em dobro no interrogAção.
Obrigada a quem me indicou e a quem abraçou a causa ao meu lado e ao lado do Daniel – a quem chamo de melhor amigo. Eu sempre leio livros ou ouço música para sonhar, para ser transportada dentro de uma visão nova, de uma partícula de vida especial. Obrigada por isso e muito mais, interroga! Parabéns!
Mara Vanessa Torres Editora-Executiva
Minha relação com o site interrogAção é de pura afetividade. É uma equipe jovem, apaixonada por cultura e artes, que em vez de seguir regras e padrões, procura descobrir ou criar sua identidade, seu espaço.
Escrever para o site interrogAção é uma experiência interessante. Estimula a organizar a escrita e a dialogar com a literatura contemporânea. Nunca tive método para escrever, para mim a literatura e a poesia são necessidades íntimas, tanto de leitura quanto de composição. Publicar no site permite compartilhar paixões e dialogar com o admirável mundo novo em que vivemos.
Marilia Kubota Redatora
O interrogAção é o campo livre da expressão e do aprofundamento do intelecto. É nele que encontramos textos/artigos/crônicas/dossiês que nos permitem ir além do conhecimento. É o atalho para a sabedoria.
Foi o interrogAção que me permitiu explorar áreas e potencialidades que até então só vislumbrava em um horizonte distante. A parceria está no começo. Em breve iremos lançar o ‘Dossiê Musas da Boca’, solidificando essa parceria.
Foi também graças ao interrogAção que tive a oportunidade de conhecer dois amigos que levarei pra sempre: Daniel Kossmann e Mara Vanessa Torres.
Rafael Spaca Redator
Mas não vamos parar a festa por aí! Para comemorar esta meia década de muita paixão pela cultura, iremos lançar durante o mês de março uma nova versão do site, totalmente focada na experiência da leitura, novas seções de conteúdo e várias outras novidades. Fiquem atentos aos anúncios neste editorial e nas nossas redes sociais.
Para finalizar, queria também agradecer a todos os nossos leitores, parceiros e apoiadores, por acreditarem e ajudarem a manter essa chama do interrogAção acesa, que é alimentada por muito suor, tesão e sonhos.
Quando éramos crianças, corríamos para o sofá (ou cadeira) com o intuito de assistir aos desenhos animados que envolviam personagens-animais, tais como Taz, Pernalonga, Tom, Jerry, Mickey, entre outros. Mas o que não sabíamos acaba de ser revelado na obra “Três Dedos: Um escândalo Animado” (2009), de Rich Koslowski.
O que muitos críticos acusam como um trabalho vazio ou uma “leitura parodística do mundo encantado dos desenhos” reflete uma tentativa para silenciar a gravidade no interior do escândalo exposto neste livro.
Em forma de HQ-Documentário, Rich investiga os bastidores da indústria cinematográfica hollywoodiana através de um levantamento detalhado que nos mostra seu surgimento, desde o fim do cinema primitivo nos Estados Unidos.
Nesse contexto, o leitor conhece a vida do cineasta Dizzy Walters, fundador do “cinema animado” ocidental. Com uma trajetória de vida marcada por crises e sucessos, Rich aponta que o grande diferencial de Dizzy deu-se na coragem de retirar do submundo, os artistas – que, por serem “desenhos animados” — eram demonizados pela sociedade tradicionalista norte-americana.
Rich Koslowski
Vivendo uma fase sombria, “ele começou a freqüentar partes cada vez mais perigosas e pouco recomendadas da cidade, até que finalmente, uma noite, encontrou-se vagando (…) pela ‘Animalândia’” e conheceu – tocando numa boate escondida — o ratinho Rickey”. Esse encontro muda toda a história do cinema.
O talento e carisma de Rickey no palco fez Dizzy tomar uma atitude arriscada: levar para as telas os “animados”, mesmo correndo o risco de perder sua dignidade, pois nessa época, esses bichinhos sofriam bastante preconceito, vivendo na marginalidade e esquecidos pelo poder público.
Ser um “animado” era nocivo, repugnante e assustador. A sociedade composta pelos humanos excluiu a raça animada do convívio social e a jogou — sem o mínimo de cidadania — nos bairros periféricos, no qual muitos deles viviam da prostituição, tráfico de drogas e animação em festas infantis, onde as crianças contratavam os “animados” para violentá-los em orgias envolvendo recheio de chiclete sintético, refrigerante com alto teor de gás e brigadeiros industriais.
O risco em tornar um “animado” ícone pop era alto, mas Dizzy Walters investiu todo seu dinheiro no filme “Rickey na Ferrovia”. Surpreendentemente, o sucesso foi imediato! Mesmo com todo o ceticismo enraizado na crítica de cinema especializada, as plateias humanas aclamavam o filme como “revolucionário”.
Rich Koslowski afirma que:
Rapidamente, todos os grandes estúdios de cinema começaram a produzir filmes estrelados por atores animados. Seis meses após a estréia de ‘Rickey na Ferrovia’, quatro dos maiores estúdios lançariam produções estreladas apenas por elencos de atores animados.
Assim, a indústria cinematográfica de animação promove uma avalanche de filmes marcados pelo fracasso de bilheteria. Por algum motivo desconhecido, o público não respondia positivamente ao lançamento dos novos filmes que surgiram após o “fenômeno Rickey”.
O autor entrevista (entre ex-atores e testemunhos da época) Hans Wurstmacher:
Enquanto os filmes animados não estrelados por Rickey causavam prejuízos aos atravessadores, produtores e exibidores, a fama de Dizzy e seu parceiro lotavam as capas de revista, jorrando dinheiro por todos os lados!
A alta cúpula do setor de animação em Hollywood estranhou como Dizzy e Rickey tornaram-se, do dia para a noite, os novos magnatas do cinema. Algo errado estava acontecendo nos círculos internos do setor.
O sucesso de Rickey aumentava a cada filme realizado, mas para atingir a fama imediata os artistas sempre pagam um alto preço.
Até o ano de 1946, apenas os filmes da dupla prosperavam, fazendo Rickey tornar-se o maior super-astro animado de todos os tempos, o que o levou a casar-se com uma humana! A união afetiva com Rosa Belmont promoveu uma grande discussão étnica nos anos 40 nos Estados Unidos: Humanos podem unir-se a Animados? Mesmo com a fúria do público conservador norte-americano, sem dúvida, Rickey e Rosa quebraram os tabus em torno do amor entre seres tão distintos.
A vida de Rickey e Dizzy estava no seu melhor momento, até que os segredos sobre o Ritual são revelados à imprensa a partir de uma denúncia anônima realizada em 1948, que trouxe à tona um dossiê fotográfico responsável pela desgraça da carreira de ambos. As imagens confirmam: o Ritual é uma terrível realidade.
A partir das imagens expostas por Rich, “Três Dedos” promove um debate com ex-atores animados fracassados para compreender a possível ligação dos personagens centrais com o escândalo envolvendo o Ritual.
Seria essas práticas macabras que o levaram à fama absoluta? É a partir desta fórmula bizarra que os desenhos animados conseguem hipnotizar milhares de crianças atualmente? Seria o “horror” a palavra de ordem nas animações que formaram gerações de homens e mulheres?
Numa rara aparição à Rich Koslowski, Rickey polemiza:
Comentários bombásticos buscam questionar a indústria cinematográfica e avaliar o raio‑X do maior escândalo da cultura pop nos anos 40.
Quem lembra do Pato Daniel? Engasguinho? Tonto? Liu Liu? Rapidinho Rodriguez? Gafanhoto Cantante? Pernalouca? Freidrich Von Gatze? Millie Marsupial? Pato Nildo? Antigos grandes astros da animação que hoje vivem em condições precárias, na maioria dos casos vendendo-se à indústria pornográfica ligada à categoria Zoo-Shemale-Gagfactor ou trabalhando nas zonas boêmias da Animalândia.
A repercussão em torno do Ritual promoveu ataques de artistas e políticos famosos (como Marilyn Monroe, o senador Theodore Iverson, Martin Luther King e J. F. Kennedy), que “se levantaram contra o abuso e tratamento ruim dado aos animados”. Poucos meses após a manifestação de apoio aos animados, os mesmo críticos que acusavam a indústria hollywoodiana por tais crimes sofreram trágicos “acidentes de percurso” até hoje inexplicáveis. Haveria alguma ligação entre essas mortes e o Ritual?
Pernalouca, após ser questionado por Rich sobre sua possível ligação com ritual, reage de forma surpreendente:
Desse modo, “Três Dedos” apresenta aos leitores o processo de construção dos mitos animados da TV e cinema. Analisa como a indústria da animação lucra milhões de dólares, investindo em filmes e séries televisivas infantis que movimentam um mercado macabro, obrigando os artistas a se submeterem ao Ritual em troca da fama, luxo e reconhecimento de público. Quando os produtores lucram tudo que podem, os jogam no esquecimento absoluto.
O que está por trás do universo dos filmes infantis? Até que ponto nossos filhos devem consumir tais conteúdos, marcados por uma atmosfera de horror e submissão? “Três Dedos” é um livro que precisa ser lido e divulgado imediatamente nas escolas, creches e aos pais mais cuidadosos, como um alerta moral sobre a maldição envolvendo os desenhos animados.
“E a rachadura na xícara de chá abre uma trilha para a terra dos mortos”, escreveu o poeta W.H Auden. Partindo dessa imagem, percebemos uma alameda silenciosa e intrincada de caos, dúvidas e inseguranças invadindo o rotineiro e confortável espaço social, personificado pela figura de uma xícara de chá. Um tipo de invasão sem volta, pois penetra no estado de espírito de um grupo, nação ou comunidade, desnudando simulações e fazendo cair máscaras. Esse é o cenário esboçado pelo filme Dogville (2003), dirigido pelo diretor dinamarquês Lars von Trier, e cuja temática será objeto de mapeamento, reflexão e análise no que concerne ao imaginário material da cidade e dos personagens fictícios.
A história do longa-metragem se passa em uma vila chamada Dogville, habitada por pessoas simples, com anseios modestos e sem perspectivas de mudança. Situado entre montanhas, o vilarejo tem pouquíssimo contato com o mundo exterior, isolando os moradores aos limites do lugar. A rotina mecanizada de Dogville reflete em uma comunidade acomodada, sem capacidade criativa e completamente entorpecida. Um de seus moradores, o aspirante a escritor Tom Edison (interpretado pelo ator Paul Bettany), avoca para si a autoridade de “líder-comunitário” e tenta inserir novas ideias e discussões no seio da comunidade.
Em um dado momento, a empoeirada vila é tomada de assalto pela presença de Grace (vivida pela atriz Nicole Kidman), forasteira que chega furtivamente à Dogville. Tom é o primeiro a ter contato com Grace, intercedendo por ela perante os outros membros do grupo. Depois de uma assembleia, fica decidido que Grace terá duas semanas para conquistar a confiança do povoado e, sugestionada por Tom, a forasteira decide oferecer sua ajuda aos habitantes.
A “rachadura na xícara”, iniciada com o aparecimento de Grace, se estende durante toda a sequência do filme, dividido em nove capítulos. No decorrer da trama, mudanças substanciais acontecem no pequeno vilarejo e o ar de felicidade idílica dá lugar à nuvem de fumaça densa, fúnebre e tenebrosa. A população de Dogville começa mostrando medo e desconfiança em relação à permanência de Grace na cidade, modificando o pensamento pouco depois, já que todos os quinze habitantes estavam sendo beneficiados pelo trabalho da forasteira. O enredo segue até revelar a verdadeira face de Dogville: de amigos acolhedores, os habitantes passam a predadores vorazes, tratando Grace como objeto, esmagando sua identidade, desumanizando‑a.
Para entender como se dá a construção do imaginário material da cidade e de seus habitantes, cabe destacar a aposta do diretor Lars von Trier em um estilo cinematográfico híbrido, em que figuram elementos teatrais e literários. Com essa mistura, as noções de real e irreal se entrelaçam e subvertem os modelos padrões, alterando também a percepção de verdadeiro e falso. O longa-metragem apresenta características do teatro grego (instiga o desejo do espectador pela violência crua), teatro do absurdo (interação dos atores com objetos imaginários), bem como a ausência de fundo musical. Outro fator decisivo na construção do filme é a utilização de cenários destacados no chão, marcando a presença de cada habitante no ambiente um do outro, e o uso de paredes pretas (teatro caixa-preta), valorizando assim um formato mais intimista, voltado à dramaticidade e tensão.
A falta de “distrações cênicas” permite que o espectador concentre a atenção nas relações que se embaraçam e desembaraçam na cadeia dos acontecimentos. Dessa forma, observa-se a construção de Dogville como uma cidade parada no tempo, vítima de sua própria amargura e solidão. A cultura da repetição, mediocridade e imutabilidade toma conta do pequeno espaço, afogando os moradores em uma espécie de torpor cego. Presos em ideias fixas, eles não conseguem enxergar além dos seus próprios muros, e mesmo integrando o todo — representado pelo espaço comunitário — os membros de Dogville não se reconhecem como indivíduos.
Os moradores perdem a maior parte das horas do dia em suas atividades cotidianas, cuja única orientação vem do badalo monocórdio do sino da igreja, administrado por uma habitante da vila, já que nenhum padre jamais apareceu no local. Dentre os habitantes, estão casais infelizes e apáticos (Chuck e Vera), pais que não sabem amar e educar os filhos; fabricantes de objetos e produtos sem qualidade, mas que logram em cima da comunidade através de preços exorbitantes (família Henson e senhora Ginger); homens hipocondríacos ou que se recusam a aceitar a enfermidade (dois extremos, representados pelo ex-médico Thomas Edison, pai do autointitulado escritor Tom, e o irascível cego McKay); além do transportador de carga (Ben) que frequenta prostíbulos e tenta esconder o fato por vergonha, e a faxineira solitária e sua filha deficiente.
Em um primeiro momento, a inércia bucólica do lugar encanta Grace que, cansada de fugir de suposta máfia, faz tudo para permanecer no local. Quando os habitantes de Dogville percebem o poder que exercem sobre Grace, apelando para o medo que a desconhecida tem de ser entregue à polícia ou aos mafiosos, há uma ruptura gradativa no modo de tratamento. De “recém-integrante” do espaço comunitário, a forasteira se transforma em escrava física e sexual, sendo explorada de todas as maneiras possíveis.
A partir desse ponto, Dogville começa a se construída como “cidade do cão”, onde pessoas agem por instinto animalesco de poder e controle, forçando Grace a ser um de seus objetos. Toda a mesquinharia da cidade é camuflada pela afirmação medonha dos habitantes de que “só queremos o seu bem” ou “não gostaríamos de fazer isso com você”, representando a imagem do algoz que açoita e flagela, alegando que o faz pela graça de Deus e bem de toda a humanidade (vide a barbárie perpetrada pela Santa Inquisição contra supostos hereges e o contínuo massacre étnico e religioso cometido nas terras do Oriente Médio, por exemplo).
O ideal conservador, tradicionalista e pacato da cidade camufla o medo da mudança que assola o íntimo dos moradores, deixando-os capazes de qualquer selvageria para conservar a atmosfera inerte e o comodismo. No imaginário dos moradores de Dogville, a cidade funciona perfeitamente bem, integrada por ideais democráticos e solidários de manutenção de valores tradicionais e familiares. Mas com a chegada de Grace, o espectador começa a acompanhar o declínio moral e social da vila; ruínas que estavam escondidas na cegueira da cidade, em sua natureza amorfa e imutável.
Ao penetrar no nevoeiro que é a “cidade do cão”, Grace transforma-se no dedo em riste, uma espécie de questionamento vivo às imagens construídas sobre a vila e seus habitantes. As certezas de Tom Edison começam a ser removidas, revelando ao próprio “escritor” que a última coisa que ele gostaria que acontecesse era passar por mudanças ou confrontar sua vida. Por outro lado, Grace prova através de suas ações e reações diante de todas as brutalidades das quais é vítima que “não estar morto não é estar vivo”, como disse o poeta e ensaísta E.E Cummings. A criatividade e humanidade da jovem forasteira lembram à Dogville como a vila é pequena em espírito, limitada geograficamente, trancafiada em um mosaico de rotinas, perfeitamente adaptada e estabilizada em situações que sequer conhece ou entende.
Compreendendo o imaginário como a cultura de um grupo, percebe-se a desconstrução das imagens de Dogville, desnudando o caráter tirânico de pessoas catatônicas, incapazes de lidar com rupturas. A vila imaginária de Lars von Trier é um emblema das grandes cidades e sua “filosofia do absurdo”, onde a individualidade se perde no meio de relações superficiais e a sede do “poder de vida e de morte” afugenta sentimentos, criando hierarquias.
Para superar tamanho desgaste, Grace faz referência ao estoicismo e sua ética do “imperturbável, extirpação das paixões e aceitação resignada do destino” como forma de atingir à sabedoria. Dores, sofrimentos e infortúnios são esquecidos e personificados na imagem de uma mulher doce, meiga, com voz açucarada e capaz de suportar as adversidades. A construção dessa imagem faz referência a aceitação da sociedade atual, silenciosa e cativa, subjugada por “poderes microscópicos”, expressão cunhada pelo pensador francês Michel Foucault, que dominam, martirizam e devastam sua existência.
Dogville remonta imagens do nosso quadro social, assassino de individualidades e tomado por mesquinharias. Como os habitantes desse pequeno povoado esquecido, alimentamos a ideia de que somos formados por “justiça, igualdade e fraternidade”, escondendo o rosto ao desumanizar e estigmatizar o outro. A caricatura do covarde personagem Tom Edison mostra o lado intragável do medo de encarar inseguranças e mudanças, da submissão a uma ordem social imposta, do ideal de fetiche gregário e da ação instintiva, com a busca da satisfação de necessidades físicas e dos próprios interesses.
Saturno devorando seu filho
O desfecho do filme, trágico e intenso – a exemplo da dramaturgia grega -, apresenta imagens dicotômicas e míticas, presentes no imaginário social. Inicialmente concebida como Prometeu, titã mitológico que, guiado pelo amor aos humanos, decide ensiná-los a civilização e as artes e é amaldiçoado por Júpiter (Zeus), sendo severamente castigado, Grace vai assumindo a forma do quadro de Goya (Saturno devorando seu filho), e engole a cidade inteira, queimando‑a e trucidando‑a.
Dogville é formada por símbolos de apreensão do real, emblema de imagens que são transformadas em pessoas, sentimentos, situações e coisas. Os personagens da “cidade do cão” são metáforas que unem objetividade e subjetividade. Refletir sobre o imaginário é compreender sua importância na construção da realidade e na formação da identidade humana, em toda sua inquietação e complexidade.
O principal homenageado da Bienal do Livro Paraná 2010 foi o crítico literário Wilson Martins, falecido no início deste ano. Como fechamento, o último Evento Nobre da Bienal, intitulado Wilson Martins: mestre da crítica, foi debatido por dois amigos do crítico, os escritores Miguel Sanches Neto e Affonso Romano de Sant´anna.
Miguel Sanches Neto é escritor, crítico literário em diversos suplementos e atualmente leciona na Universidade de Ponta Grossa, no Paraná. Affonso Romano de Sant´anna também é escritor, professor e crítico. Ambos os escritores tiveram uma estreita relação de amizade com o crítico que vivia intensos sentimentos de amor e ódio com a sociedade literária do Brasil.
Wilson Martins foi autor de diversas obras, destacando-se a História da Inteligência Brasileira e a Crítica Literária no Brasil. Além disso, ganhou alguns dos principais prêmios literários nacionais, como o Jabuti e o Prêmio Machado de Assis. Ele morreu no começo deste ano, com 88 anos, em Curitiba. Para saber mais sobre a vida dele, leia este pequeno resumo feito pelo jornal Estadão, na matéria “Morre o crítico literário Wilson Martins”.
Afinal, Wilson Martins significava o quê para a cena literária brasileira? Affonso Romano conta que seu primeiro contato com o crítico se deu por conta de um texto que este escreveu sobre um de seus primeiros livros. Ele inicia o debate da Bienal do Livro Paraná 2010 fazendo uma breve analogia dizendo que hoje estamos vivendo um momento interessante na política brasileira em que os candidatos dão apenas opiniões amenas sobre assuntos polêmicos, havendo uma moderação de discurso. Para ele isso é comum, pois a expressão ¨ser político¨ é ser parcial, é não correr riscos e justamente era isso que Wilson Martins não fazia com os livros que chegavam em suas mãos. O escritor também afirma que o crítico não poupava opiniões, mesmo que muitas vezes em tom ácido e contraditório, em relação às opiniões da mídia, fazendo assim valer a existência da crítica no país.
Miguel Sanches Neto conta que já acompanhava o trabalho do crítico até ter a oportunidade de entrevista-lo pela Revista Joaquim. Ele relata que nesse momento surgiu uma grande amizade, aprendendo a reconhecer quando Wilson não gostava de alguma obra e a lidar com seu modo de criticar. Miguel acredita que o papel do crítico é criar a sua própria verdade e era justamente isso que Wilson Martins fazia, de forma bem humorada. Havia muita sinceridade no que escrevia, agindo sempre muito independentemente tanto da academia como da crítica, que alimentava os cânones da literatura. O escritor conta sobre muitos momentos em que pôde acompanhar de perto o trabalho de Wilson, inclusive os boicotes que foi sofrendo ao longo do tempo devido a sua imparcialidade, que não era aceita pelos suplementos em que escrevia.
Os escritores, na Bienal do Livro Paraná 2010, contam que realmente o crítico não aceitava sugestões sobre quem, ou o quê, deveria escrever. Ele recebia diariamente inúmeros volumes de novos autores e de obras desconhecidas as quais ele dava certa prioridade, dizendo que o prazer de um crítico estava em descobrir um grande autor e uma grande obra. Os convidados também ressaltam a falta que há hoje de um crítico, e até resenhista, que saiba olhar com olhos ávidos para o que se produz no contemporâneo, assim como as obras que circulam no além-mídia, pois se acaba por fazer apenas uma reportagem informativa e não uma produção de conhecimento crítico, necessário para a formação de leitores.
A importância do trabalho de Wilson Martins é caracterizada como fundamental. Miguel Sanches Neto afirma que as universidades devem dar mais atenção ao trabalho do autor, principalmente para se levar em conta que um bom crítico deve ter uma bagagem cultural de alto nível e ser capaz de ler os mais diversos genêros, pois nem tudo que a mídia apresenta deve ser consumido. Dentro dos comentários sobre a necessidade de se ler o crítico no meio acadêmico, Affonso Romano de Sant´anna cita situações como a da professora Flora Sussekind, que há pouco tempo atrás criticou a obra de Wilson Martins e seus seguidores, acusando que a crítica havia morrido há muito tempo, deixando clara a posição beletrista e canônica que os cursos de Letras mantém ainda hoje.
O assunto do debate foi fundamentado, principalmente, com a atual situação da crítica no país e de que forma a mídia trabalha para manter um espaço na ampliação da literatura em revistas, jornais, sites e etc. Há um descontentamento enorme por conta da parcialidade exagerada de quem escreve, ou ainda, com o ideário acadêmico de que a literatura só era verdadeira no passado, valorizando os chamados cânones. Essas atitudes se afirmam como uma grande ilusão pois a proliferação de feiras, bienais, jornadas literárias e etc comprovam que os contemporâneos também querem discutir o que é produzido hoje e a Bienal do Livro Paraná 2010 foi um terreno rico para isso.
O interrogAção gravou em áudio todo esse bate-papo e se você quiser pode escutar aqui pelo site, logo abaixo, ou baixar para o sue computador e ouvir onde preferir.
Ouça a palestra completa: (clique no link abaixo para ouvir ou faça o download)
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