Assim, ele bebeu até morrer. Que é apenas mais um jeito de viver, ou de lidar com a dor e a inutilidade de saber que tudo não passa de sonho e de um grande, desconcertante e bobo vazio (Allen Ginsberg sobre a morte de Jack Kerouac)
Se o livro Jack Kerouac: King of the Beats (José Olympio, 2012), de Barry Miles tivesse uma trilha sonora seria algo ao som de Charlie Parker, em alguns momentos alternando para a rapidez de Dizzy Gillespie. De fato, Miles, jornalista e figura conhecida dos anos 60, não deixa passar sem trilha sonora a saga do escritor que é até hoje uma referência quando se trata de contracultura e prosa espontânea, embalado ao som do jazz ou bebop. Kerouac desde sempre ambicionou ser grandioso, mas passou mais tempo imerso no efeito do álcool, drogas e problemas com o ego que acabou como uma boa lenda: sem muito prestigio, mesmo com fama internacional, morto sentado em um sofá, vendo TV e bebendo cerveja.
Mesmo que aparentemente decepcionante o fim do pai dos beats, a vida de Jack daria um belo romance que Miles conta de forma direta e sem fôlego, assim como as narrativas do escritor. Vale lembrar que Barry escreveu a biografia dos outros dois nomes que figuraram ao lado de Jack Kerouac: Allen Ginsberg e William Borroughs, entre outros nomes da contracultura das décadas seguintes. Mesmo que o autor tenha sido apenas um adolescente quando ouviu falar de Kerouac pela primeira vez, ele relata tudo como se estivesse vivido cada segundo com o grupo americano, e ainda, se dá ao direito de repreender o biografado sempre que possível. A figura de Jack Kerouac é dessacralizada e transformada na imagem de um eterno garoto perdido com um dom enorme de contar histórias.
Em King of the Beats, Miles faz todo o percurso de Jean-Louis Lebris Kerouac, desde a chegada da família Kerouac — franco-canadenses — para os EUA, na cidade de Lowell (Massachussets) onde Jack dá seus primeiros passos no dom de reunir pessoas, discutir histórias e mais tarde isso envolveria também mulheres, drogas e bebida. Nesse movimento cronológico o autor constrói uma biografia recheada de detalhes, dando enfâse para determinados momentos da vida do pai dos beats . Por exemplo, a formação do grupo que ele dedica um capítulo inteiro, chamado de A Comuna da 115th Street, ou ainda em Cidade do México em que trata a importância desse momento em que Kerouac transita entre várias fases, escrevendo sobre jazz, convivendo com Borroughs e vivendo longe da mãe.
O biógrafo conta que ouviu falar de Jack no fim dos anos 50, época em que finalmente o escritor ganhou o mundo com o lançamento de On The Road. Miles conta que era impossível para um adolescente não sentir o vento no rosto e a liberdade ao ler as páginas da chamada bíblia beat. Depois disso, conta que jamais seria o mesmo, como de fato nunca foi, inclusive relatando os anos 60 que viveu no livro In the Sixties.
Jack Kerouac começou a escrever ainda criança, bastante cedo já escrevia para um jornal local que seu pai trabalhava. Mas o jovem Kerouac queria mais, era cada vez mais atraído pela literatura e teimava em transformar tudo na sua vida em ficção, ninguém escapava da visão minunciosa de Jack. Ele não precisava de muito esforço para romancear a realidade de forma a contar ótimas histórias que sempre pareciam bastante reais. Seu primeiro livro a ser editado, The Town and The City foi o único que manteve o estilo de prosa tradicional, mas altamente influenciado pelo americano Thomas Wolfe,Jack queria mais. Ambicionava a prosa espontânea como veículo das suas histórias, o desejo de fazer uma literatura focada na linguagem coloquial, narrada conforme o ritmo do relato, foi levada até o fim por ele. Kerouac se considerava um mestre nessa técnica e inclusive, escreveu uma espécie de manifesto sobre o assunto.
The Subterraneans foi escrito numa prosa espontânea, com frases longas a ponto de se estenderem por páginas inteiras, sem obedecer a regras estritas de gramática, mas conservando um fio da meada em termos de sentido. Esse é o estilo espontâneo de Kerouac sob seu aspecto mais positivo. Tanto Allen Ginsberg como William Borroughs ficaram impressionados como que ele havia realizado e queriam saber mais sobre seu método. Pediram-lhe que escrevesse um pequeno folheto com instruções sobre como escrever daquela maneira. O resultado foi o ensaio “Essentials of Spontaneous Prose”, escrito inicialmente para seus amigos, porém, mais tarde, divulgado amplamente em antologias na condição de manual de seu conteúdo (p.271)
Assim como Thomas Wolfe influenciou fortemente Kerouac na questão espontânea de escrever, ele deu também a necessidade de descobrir a América que Jack sentia pulsante. Quanto mais loucos ambulantes ele conhecia, mais queria ter histórias para contar. Apesar dele já ter viajado muito, incluindo como ajudante de cozinha na Marinha, nunca tinha adentrado os Estados Unidos e visto de perto seus personagens. Depois da primeira ida para além dos limites de Nova Iorque, Jack jamais parou, levando consigo sempre papel e lápis para anotar cada improviso feito por onde fosse.
É muito interessante perceber a importância das figuras de Allen Ginsberg e William Borroughs, o segundo como o grande guru do restante do grupo Beat. Basta observar em On The Road — inclusive no filme a figura de Old Bull Lee — a forma como todos achavam a loucura dele extremamente louvável. Foi Bill — como era chamado — que apresentou grandes nomes da literatura, falava sobre liberdade, William Reich, Freud e dava conselhos para os garotos que viviam circulando por todos os lados em busca de algo.
Bill emprestou-lhes uma pilha de livros: Cocteau, Blake, Kafka, Joyce e Céline. Discutiu a teoria circular da história, de Vico, e mostrou-lhes um volume de ilustrações dos códices maias. (…) (p.109)
Um dos pontos mais relevantes de King Of The Beats é a forma como a figura de Jack Kerouac vai se desmitificando ao longo do caminho. Se você leu apenas o clássico On The Road e/ou viu a recente adaptação do brasileiro Walter Salles no cinema, pode ir se desarmando sobre a figura do escritor. Apesar dessa obra conhecida ser totalmente baseada nos primeiros impulsos de Jack viajar pelo país, ele levou um bom tempo para ser escrito, pois Kerouac nunca achava suficiente tudo que vivia. Passava muito tempo desequilibrado com mulheres, drogas, a mãe e questões metafísicas que seus livros, por serem espontâneos, carregam toda essa força onde somente a coincidência com a realidade ligava um livro ao outro.
Outro ponto interessante é como Kerouac — e claro, toda a imprensa da época — se preocupava em definir o termo Beat Generation. Barry Miles vai construindo como cada significado dado foi se agregando ao grupo, não deixando que nenhum omitisse os adjetivos que definiam aqueles jovens. O biógrafo vai bem além de fazer um grande relato da vida de Jack Kerouac, ele acaba traçando um panorama completo da Geração Beat, amarrando as situações e as pessoas que eram seduzidas pela vida boêmia, altas doses de literatura e muita filosofia de boteco.
Em 1948, eu disse a John Clelon Holmes “Essa é mesmo uma geração beat”. Ele concordou e, em 1952, publicou um artigo no New York Times intitulado “Esta é uma geração beat”, e atribuiu a mim a versão original. Desse modo, já dera a ela o nome de Geração Beat nos originais de On The Road, escrito em maio de 1951 (Jack Kerouac, preocupado com a reivindicação da paternidade do termo, p.208)
Diria que a Times Square era o centro em torno do qual ficamos vagando — Borroughs, Kerouac e eu — em 1945 e 1948, provavelmente o período mais formativo da mente Spengleriana, em que a linguagem que incluía expressões como “Zap”, “Hip”, “Square”, “Beat” nos era oferecida por Huncke às mesas do café Bickford. Basicamente eu diria que Herbert Hucke foi quem deu origem à noção de beat (…) (p.271)
Muito se fala sobre o movimento hippie, o advento do rock e os questionamentos que vieram com eles na década de 60 como elementos caracterizantes de contracultura. Mas a verdade é que os jovens beats, nas décadas de 40 e 50 — descendentes da Geração Perdida — eram embriões muito poderosos para que depois existisse esse cenário inflamado. Estes jovens vinham de um período caótico de depressão econômica e uma Segunda Guerra traumatizante. Queriam mesmo era se desvencilhar dos códigos sociais e o modo de vida americano que mostrava sérios problemas em se manter em pé. Os relatos de Barry Miles sobre as noites de festas em apartamentos, regadas à alcool, benzadrina e bebop não deixam nada a dever para as loucuras que viriam a ser feitas nas próximas décadas ao som das guitarras elétricas.
Para muito além do senso comum de que Jack Kerouac e seus pares eram vagabundos ambulantes que sonhavam em ser escritores, King of The Beats relata as aventuras, perspectivas e tentativas variadas de um grupo de jovens encontrar a sua voz e se perder tantas vezes no meio do caminho, deixando para além de obras que reconstroem em poesia, relatos e loucuras, um sentimento de liberdade que é práticamente inevitável de não se sentir ao ler On The Road, Uivo, Almoço Nu e etc. Um passeio há uma época distante que ainda transmite e faz parte do sentimento de não acomodação.
Algumas Curiosidades:
Kerouac demorou mais de 10 anos para conseguir publicar o On The Road e ainda assim com muita edição e mudanças, pois os editores consideravam o texto pornográfico, homossexual e incentivador do uso de drogas. O romance que seria a bíblia dos Beats saiu só no fim da década de 50 e no inicio achava-se que ela pertencia aquela época. Jack, apesar de ser muito lido nesse momento, era incompreendido pois não concordava com o novo modo de viver dos jovens e achava chato explicar como as coisas funcionavam na década anterior.
Quando mandou os originais the On The Road para o editor, ele mandou também o esboço de uma capa que seria, na opinião dele, perfeita para o livro, incluindo uma foto própria do seu agrado. Na verdade ele tinha achado horrível a capa de Town and The City e resolveu sugerir uma melhor para esse livro. Jack Kerouac era bastante perfeccionista (para não dizer chato) em relação à sua obra, mantendo uma relação díficil com os editores.
Jack Kerouac não perdoa e continua resmungão até na sua última entrevista, traduzida aqui, pela Revista Bula.
O manuscrito original de On The Road, tem 36 metros de comprimento e foi escrito num ritmo frenético, regado a benzadrina e cigarros e em apenas três semanas. São rolos de papel, colados com fita adesiva que estarão expostos a partir desse mês até o fim de 2012 na Biblioteca Britânica, em Londres.