Category: Cinema Nacional

  • Tatuagem (2013), de Hilton Lacerda: irreverência e anarquismo | Análise

    Tatuagem (2013), de Hilton Lacerda: irreverência e anarquismo | Análise

    Eu sou a mosca que pousou em sua sopa. Eu sou a mosca que pin­tou pra lhe abusar. (…) E não adi­anta vir me dede­ti­zar. Pois nem o DDT pode assim me exter­mi­nar. Porque você mata uma e vem out­ra em meu lugar.

    Raul Seixas em “Mosca na Sopa”

    Sinôn­i­mo de incô­mo­do e despre­zo, a mosca é um dos inse­tos mais rechaça­dos do con­vívio social. Ela transtor­na reuniões famil­iares, impor­tu­na tradições de ordem e con­t­role, desnu­da as estru­turas assép­ti­cas. A mosca na sopa, per­son­ifi­cação ado­ta­da pelo com­pos­i­tor e músi­co brasileiro Raul Seixas, é uma anar­quista públi­ca e notória: sua pre­sença é hos­tiliza­da, mas inde­pende de aceitação; por mais que seja intim­i­da­da, vio­len­ta­da, apri­sion­a­da e dego­la­da, ela vol­ta em múlti­p­los pares. E é com taman­ha per­sistên­cia e deboche que elas, as famiger­adas moscas, comu­ni­cam sua mensagem.

    tatuagem-hilton-lacerda-analise-posterNo final da déca­da 1970, as moscas tam­bém mar­cavam pre­sença físi­ca e metafóri­ca em ter­ritório brasileiro. Para os agentes da ditadu­ra mil­i­tar, todo e qual­quer ele­men­to sub­ver­si­vo que aten­tasse con­tra a ordem, o gov­er­no e o trinômio “tradição – família – pro­priedade”, dev­e­ria ser sumari­a­mente extin­to. Naque­les anos de por­tas fechadas, entre a per­ife­ria de Recife e Olin­da, cidades do Nordeste brasileiro, o dire­tor Hilton Lac­er­da ambi­en­tou a história de uma trupe de artis­tas que cri­a­va um uni­ver­so próprio de irreverên­cia, zom­baria e auto­ria no teatro-cabaré Chão de Estre­las, cri­ação inspi­ra­da pelo grupo de teatro Viven­cial Diver­siones, que exis­tiu entre 1972 e 1981.

    Na ficção, o sis­tema pro­to­co­lar de regras, ordens, hier­ar­quia e dis­ci­plina do sis­tema mil­i­tar, exer­cia influên­cia angus­tiante em um tími­do recru­ta nasci­do e cri­a­do no inte­ri­or de Per­nam­bu­co, tor­nan­do-lhe penoso e mortífero o dev­er de sus­ten­tar uma más­cara que mal lhe cabe no ros­to. Esse é o fio con­du­tor da pólvo­ra que explode em “Tat­u­agem” (Brasil, 2013), filme do cineas­ta per­nam­bu­cano Hilton Lac­er­da em sua estreia como dire­tor depois de lon­ga exper­iên­cia como roteirista. A tra­ma traz como pano de fun­do o romance entre o agi­ta­dor cul­tur­al e per­former Clé­cio Wan­der­ley, inter­pre­ta­do pelo ator Irand­hir San­tos, e o sol­da­do raso Arlin­do Araújo, con­heci­do como Fin­in­ha, per­son­agem vivi­do por Jesuí­ta Bar­bosa.

    Chão de Estrelas, o Moulin Rouge do subúrbio, a Broadway dos pobres, o Studio 54 da favela
    Chão de Estre­las, o Moulin Rouge do sub­úr­bio, a Broad­way dos pobres, o Stu­dio 54 da favela

    Tat­u­agem” fala de resistên­cia políti­ca, cri­ação explo­si­va, anar­quista, debocha­da, livre; é uma afir­mação do espaço daque­les que são esma­ga­dos por uma con­jun­tu­ra arma­da, mas que resistem, queimam, ren­o­vam. Na tra­ma, Chão de Estre­las nasce no seio da per­ife­ria, epí­grafe acen­tu­a­da no iní­cio do lon­ga-metragem com a fala de Clé­cio ao destacar que o cabaré é “o Moulin Rouge do sub­úr­bio, a Broad­way dos pobres, o Stu­dio 54 da favela”, em clara refer­ên­cia aos inter­na­cional­mente con­heci­dos, cul­tua­dos e caros ambi­entes de apre­sen­tação artís­ti­ca e cor­po­ral da época. É nesse perímetro de rein­venções que o dire­tor Hilton Lac­er­da detém o olhar, crian­do uma nar­ra­ti­va audaciosa.

    Clé­cio e Fin­in­ha se con­hecem por meio de Paulete (Rodri­go Gar­cia), irmão da então namora­da do recru­ta. Enquan­to Clé­cio diri­gia um espetácu­lo debocha­do, Fin­in­ha vivia apri­sion­a­do nos dita­mes do quar­tel, detal­he expos­to logo nos min­u­tos ini­ci­ais, com a visão do rapaz enquadra­do pelas bar­ras dos belich­es — efeito cri­a­do pela uti­liza­ção do movi­men­to de zoom-out. O envolvi­men­to desse casal improváv­el, vai descorti­nan­do uma nova visu­al­iza­ção e entendi­men­to do mun­do, abrindo espaço para as sen­si­bil­i­dades de dois uni­ver­sos dis­tin­tos. Rodea­do pela liber­dade em todos os sen­ti­dos, Fin­in­ha vai, aos poucos, sentin­do seu cor­po como parte do proces­so artís­ti­co e viven­cial que explode no teatro do Chão de Estre­las. Assim como o mitológi­co can­to da sereia, a magia que nasce no cabaré começa a encan­tar o jovem recru­ta, mostran­do-lhe um ambi­ente de tro­ca de relações bem mais autên­ti­co do que cos­tu­ma­va vivenciar.

    Cena do filme “Tat­u­agem” mostran­do o “apri­sion­a­men­to” de Fininha

    No filme, o “cair da noite” assume uma sim­bolo­gia extrema­mente impor­tante ao abrir novas pontes de resistên­cia. Pontes que podem ser obser­vadas no públi­co que fre­quen­ta o teatro-cabaré, for­ma­do por homos­sex­u­ais, sim­pa­ti­zantes, mil­i­tantes da luta de class­es e int­elec­tu­ais esquerdis­tas – esta últi­ma figu­ra é ado­ta­da pelo pro­fes­sor Jou­bert (Sílvio Res­tiffe) e seus poe­mas de cun­ho políti­co e lib­ertário, além da sua pro­dução exper­i­men­tal, fei­ta com uma câmera Super‑8, dire­ciona­da para reg­is­trar os momen­tos mar­cantes de produção/apresentação dos números do Chão de Estre­las. É através da noite, do ero­tismo, da luxúria escan­car­a­da, do cuspe anárquico em for­ma de per­for­mances ousadas com o cor­po e a lin­guagem, que “Tat­u­agem” vai traçan­do novas rotas de pere­gri­nação de for­ma arrojada.

    Hilton Lac­er­da

    O dire­tor Hilton Lac­er­da vem de uma lon­ga cam­in­ha­da como roteirista, trazen­do na bagagem filmes como “Febre de Rato” (2011), “Amare­lo Man­ga” (2002), “Baixio das Bestas” (2006), em parce­ria com o cineas­ta Cláu­dio Assis, e “Car­to­la – Músi­ca para os Olhos” (2006), onde divide a direção com Lírio Fer­reira. A ener­gia em con­stru­ir detal­h­es faz a assi­natu­ra de Lac­er­da um difer­en­cial palpáv­el em “Tat­u­agem”.

    A opção por con­tar a história de amor entre dois home­ns gan­ha con­tornos autên­ti­cos: Clé­cio e Fin­in­ha divi­dem o afe­to ínti­mo com os espec­ta­dores; o romance – claro, dire­to, cru – não está ali ape­nas para inqui­etar os que ain­da desvi­am o olhar diante das cenas de bei­jo ou de sexo entre dois home­ns; o amor homos­sex­u­al e o choque de vivên­cias que ele rep­re­sen­ta (o agi­ta­dor cul­tur­al e o mil­i­tar) ultra­pas­sam a aco­modação da mil­itân­cia padroniza­da: nes­sa relação de polos opos­tos está o gri­to dos amores, gru­pos, movi­men­tos, pen­sa­men­tos, vidas e sen­ti­men­tos rotu­la­dos como per­iféri­cos. É esse o ele­men­to de pul­são lev­an­tan­do por “Tat­u­agem”, levan­do à der­ro­ca­da da hege­mo­nia das insti­tu­ições sagradas e do des­file dos tri­un­fantes. Para o pal­co e o públi­co do Chão de Estre­las, não há lugar para pre­con­ceitos, não há már­tires para cas­trações. O que existe no cabaré-teatro é o rompi­men­to de tradições; um lugar onde múlti­plas jor­nadas não se chocam, mas se com­ple­men­tam, ten­do como exem­p­lo máx­i­mo a figu­ra de Clé­cio: dire­tor, poeta, agi­ta­dor, anar­quista, amante e pai.

    o performer Clécio Wanderley (Irandhir Santos) e o soldado raso Fininha (Jesuíta Barbosa)
    o per­former Clé­cio Wan­der­ley (Irand­hir San­tos) e o sol­da­do raso Fin­in­ha (Jesuí­ta Barbosa)

    A liber­dade e a vivên­cia con­sciente tam­bém estão pre­sentes no con­ceito de família apre­sen­tan­do no filme. Tuca — fru­to do rela­ciona­men­to do agi­ta­dor cul­tur­al com Deusa, mãe solteira, adep­ta dos mes­mos ideais — cir­cu­la livre­mente pelas dependên­cias do cabaré, obser­van­do os tra­bal­hos de pro­dução do pai. Em uma cena sig­ni­fica­ti­va, Clé­cio pede à Deusa que não tra­ga mais o meni­no ao cabaré pois aque­le “não é lugar para cri­ança”. Nesse gan­cho, a mãe responde que “não há lugar ade­qua­do, e sim edu­cação ade­qua­da”, fazen­do refer­ên­cia dire­ta a um mod­e­lo edu­ca­cional que apos­ta na liber­dade, con­sciên­cia e tolerância.

    Toda essa provo­cação clara e sub­ver­si­va deixa ras­tros pelo filme e encon­tra out­ra forte rep­re­sen­tante com a per­son­agem Paulete. É na ale­gria do escân­da­lo que Paulete ali­men­ta o son­ho de ser ator recon­heci­do, dan­do mais vida ao lon­ga-metragem com suas piadas espir­i­tu­osas, seus berros e gestos cor­po­rais esfuziantes. É difí­cil destacar uma úni­ca cena drama­ti­za­da pelo ator Rodri­go Gar­cía na pele de Paulete: ele con­segue faz­er os holo­fotes cir­cu­larem em torno de si, seja com expressões jocosas, canções despu­do­radas ou caras e bocas risíveis. Gar­cía tem o poder de trans­for­mar a car­i­catu­ra do artista gay trans­vesti­do em indu­men­tárias fem­i­ni­nas, em uma ver­dadeira meta­mor­fose artística.

    Rodrigo Garcia como a personagem Paulete
    Rodri­go Gar­cia como a per­son­agem Paulete

    Há mui­ta inten­si­dade e aut­en­ti­ci­dade em “Tat­u­agem” – fato que ren­deu suces­so de críti­ca, prêmios e menções hon­rosas para o filme e seus atores. Mais uma pro­va de que rotas alter­na­ti­vas são pos­síveis, tan­to no âmbito do pen­sa­men­to quan­to na ação. O audio­vi­su­al brasileiro pre­cisa de olhares difer­en­ci­ais, novas lin­gua­gens, desafios, pos­turas e riscos, não só da parte dos pro­du­tores, mas tam­bém de espec­ta­dores. Cin­e­ma é feito de sen­si­bil­i­dades e da per­sistên­cia de “moscas” que não se intim­i­dam com o que está dito e feito, trazen­do para si a tare­fa de ques­tionar a nat­u­ral­iza­ção do mun­do. Con­stru­ir panora­mas é como tat­u­ar a pele: na mar­ca eterniza­da, pas­sa­do, pre­sente e futuro se comu­ni­cam em um mes­mo traço. E é no cam­in­ho que per­corre esse traço que está o novo.

  • Bicho de Sete Cabeças (2001): Reflexos Roubados | Análise

    Bicho de Sete Cabeças (2001): Reflexos Roubados | Análise

    O bura­co do espel­ho está fecha­do, ago­ra eu ten­ho que ficar ago­ra. Fui pelo aban­dono aban­don­a­do, aqui den­tro do lado de fora.

    bicho-de-sete-cabecas-2001-reflexos-roubados-analise-posterO tre­cho aci­ma faz parte da músi­ca “O Bura­co do Espel­ho”, do can­tor e com­pos­i­tor brasileiro Arnal­do Antunes. A canção inte­gra a tril­ha sono­ra do filme “Bicho de Sete Cabeças” (2001), um retra­to duro, áci­do e humana­mente cru­el sobre a real­i­dade viven­ci­a­da pelos inter­nos de hos­pi­tais psiquiátri­cos. Dirigi­do pela cineas­ta Laís Bodanzky e com roteiro de Luiz Bolog­ne­si, “Bicho de Sete Cabeças” nar­ra a história de um jovem inter­na­do pelo pai em um man­icômio depois de ter sido fla­gra­do com cig­a­r­ros de macon­ha. O enre­do foi basea­do no livro “Can­to dos Malditos”, uma auto­bi­ografia de Aus­tregési­lo Car­ra­no Bueno (1957–2008), ex-inter­no de uma insti­tu­ição man­i­co­mi­al e, como muitos out­ros, víti­ma dos abu­sos, espan­ca­men­tos e tor­turas comu­mente prat­i­ca­dos nesse tipo de lugar.

    No lon­ga-metragem, Neto (pro­tag­on­i­za­do pelo ator Rodri­go San­toro) é um jovem de classe média baixa que vive con­fli­tos famil­iares por não se enquadrar no padrão de com­por­ta­men­to social­mente aceito, irri­tan­do espe­cial­mente seu pai (vivi­do por Oth­on Bas­tos). Atrav­es­san­do uma fase asso­ci­a­da à rebel­dia, Neto gos­ta de andar de skate, pichar muros, usar brin­cos e cabe­los com­pri­dos, fato que a figu­ra pater­na não acei­ta e oprime. A ausên­cia de diál­o­go e a repressão desme­di­da resul­tam no estremec­i­men­to da comu­ni­cação entre pai e fil­ho, levan­do-os à con­stante tro­ca de acusações e rompantes de agres­sivi­dade. A con­tínua ten­são e descon­fi­ança faz com que Wil­son, pai de Neto, deci­da internar o fil­ho em um hos­pí­cio depois de encon­trar cig­a­r­ros de macon­ha entre os per­tences do rapaz. A par­tir desse momen­to, a vida de Neto trans­for­ma-se em um ver­dadeiro abis­mo esque­ci­do den­tro do inferno.

    Encar­cer­a­do con­tra sua von­tade, o jovem tam­bém é igno­ra­do pelo psiquia­tra da insti­tu­ição, profis­sion­al que rara­mente aparece no lugar e cuja úni­ca pre­ocu­pação é con­seguir finan­cia­men­to, ain­da que isso sig­nifique cap­turar e internar pes­soas indis­crim­i­nada­mente. O padec­i­men­to de Neto e dos out­ros inter­nos ocorre das mais difer­entes for­mas, seja por meio de dro­gas anestési­cas e de sub­stân­cias como o metil­fenida­to, con­heci­do como “sossega leão”; ou da tor­tu­rante “camisa de força”, colete que apri­siona os mem­bros supe­ri­ores; bem como através de trata­men­tos com Eletro­con­vul­soter­apia (ECT), pop­u­lar­mente chama­dos de eletro­choques. Além dos tor­men­tos físi­cos, os “pacientes-pri­sioneiros” são humil­ha­dos, hos­tiliza­dos, bar­bariza­dos e esque­ci­dos, sofren­do forte coação de médi­cos e enfer­meiros, e sentin­do a indifer­ença e pre­con­ceito vin­dos da própria família. São seres humanos estigma­ti­za­dos, coisi­fi­ca­dos e trans­for­ma­dos em per­son­agens invisíveis, per­den­do sua liber­dade, dig­nidade, autono­mia e subjetividade.

    Autobiografia de Austregésilo Carrano Bueno
    Auto­bi­ografia de Aus­tregési­lo Car­ra­no Bueno

    A cica­triz da inter­nação psiquiátri­ca cobra seu preço, e mes­mo depois de lib­er­a­do, Neto não con­segue se adap­tar ao mod­e­lo impos­to pela sociedade e pela família, e é nova­mente encar­cer­a­do no hos­pí­cio. O rapaz só con­segue sair após incen­di­ar a cela em que está e, final­mente, chamar a atenção do pai. No des­fe­cho do filme, acom­pan­hamos Neto envel­he­ci­do pelo sofri­men­to e pela dor. Depois de tudo o que enfren­tou, o rapaz trans­for­ma-se em uma som­bra de si mes­mo, angus­ti­a­do como o quadro “O gri­to” (1893), de Edvard Munch; des­en­can­ta­do como o gri­to de ‘Nun­ca mais’, do poe­ma “O Cor­vo” (1845), de Edgar Allan Poe, e abati­do como as com­posições der­radeiras do com­pos­i­tor clás­si­co alemão Robert Schu­mann.

    Pre­mi­a­do em fes­ti­vais nacionais e inter­na­cionais, “Bicho de Sete Cabeças” pos­sui uma atmos­fera que com­bi­na cin­e­matográ­fi­co e doc­u­men­tal, evi­den­ci­a­da pela nat­u­ral­i­dade dos diál­o­gos e atu­ação dos atores. O tema tam­bém for­t­alece a luta anti­man­i­co­mi­al ao apon­tar a dor e a desin­te­gração encon­tradas em espaços que con­tro­lam e reprimem para — toman­do de emprés­ti­mo a expressão cun­ha­da pelo filó­so­fo e pesquisador francês Michel Fou­cault — trans­for­mar sub­je­tivi­dades humanas em “cor­pos dis­ci­plina­dos, cor­pos dóceis”. Por não faz­er parte do enquadra­men­to social e com­por­ta­men­to impos­to pelas redes micro­bianas de poder, Neto foi apri­sion­a­do, cas­ti­ga­do e sub­meti­do a mecan­is­mos de remodelação.

    Cena do filme “Bicho de Sete Cabeças”
    Cena do filme “Bicho de Sete Cabeças”

    Situ­ações como as do pro­tag­o­nista do filme — de não adap­tação aos parâmet­ros esta­b­ele­ci­dos — tam­bém fiz­er­am com que muitas mul­heres fos­sem sen­ten­ci­adas à inter­nação em insti­tu­ições asi­lares, como o Hos­pí­cio do Juquery. O estu­do detal­ha­do de Maria Clementi­na Pereira Cun­ha em livros (O espel­ho do mun­do. Juquery, a história de um asi­lo – 1986), arti­gos (De his­to­ri­ado­ras, brasileiras e escan­di­navas: Lou­curas, folias e relações de gêneros no Brasil (sécu­lo XIX e iní­cio do XX)) e pesquisas mostra que a imposição de padrões ditos nor­mais para o com­por­ta­men­to fem­i­ni­no exer­cia papel deci­si­vo na inter­nação psiquiátri­ca. Assim como a per­son­agem do filme “Bicho de Sete Cabeças”, as mul­heres que estavam fora do padrão social esper­a­do eram con­sid­er­adas inad­e­quadas e, dessa for­ma, obri­gadas à cor­reção exemplar.

    “O grito” (1893), de Edvard Munch
    “O gri­to” (1893), de Edvard Munch

    A imposição do padrão de nor­mal­i­dade, difun­di­da com toda força pelos dis­cur­sos de natureza médi­ca de menos de um sécu­lo atrás, foi uti­liza­da den­tro dos hos­pi­tais psiquiátri­cos para jus­ti­ficar inter­nações e ações arbi­trárias. Além do grupo fem­i­ni­no, os demais mar­gin­al­iza­dos – pes­soas pobres, mis­eráveis, moradores de cor­tiços, operários, mendi­gos e todos os que sub­ver­ti­am a ordem esta­b­ele­ci­da – eram con­sid­er­a­dos propen­sos à devas­sidão, per­ver­são, lou­cu­ra e criminalidade.

    Out­ro pon­to inter­es­sante dev­i­da­mente rep­re­sen­ta­do no lon­ga-metragem de Laís Bodanzky diz respeito à figu­ra do psiquia­tra como autori­dade com­pe­tente, ates­ta­da cien­tifi­ca­mente para pro­duzir dis­cur­sos autor­iza­dos. No iní­cio de sua inter­nação, Neto ques­tiona enfer­meiros sobre o fato de estar ali, afir­man­do que eles não pode­ri­am man­tê-lo inter­na­do, pois não esta­va doente. Um dos enfer­meiros afir­ma a Neto que os pais do jovem já tin­ham con­ver­sa­do com o médi­co e expli­ca­do toda a situ­ação. No pron­tuário de Neto con­sta­va que ele era um rapaz “agres­si­vo, rebelde, que não respeita­va seus pais, mes­mo ten­do muito amor e diál­o­go em casa”, ou seja, o jovem já esta­va ficha­do e rotu­la­do assim que entrou no hos­pí­cio, e nada do que dissesse ou fizesse mod­i­fi­caria ou aten­uar­ia sua situ­ação. Neto perdeu a autono­mia, sua capaci­dade de decidir e sua liber­dade de ir e vir. Como expres­sa Alfre­do Naf­fah Neto em arti­go inti­t­u­la­do ‘O estig­ma da lou­cu­ra e a per­da da autono­mia’:

    Des­de o instante em que o estig­ma da lou­cu­ra lhe foi imputa­do, é como se no lugar do sujeito apare­cesse a doença men­tal; então, o dis­cur­so e as ações expres­sas pelo louco ces­sam de sig­nificar em si próprias, tor­nan­do-se ape­nas sin­tomas da doença.

    Hospício de Barbacena (MG)
    Hos­pí­cio de Bar­ba­ce­na (MG)

    Dessa for­ma, aque­les que são mar­ca­dos com o estig­ma da lou­cu­ra são con­sid­er­a­dos inca­pazes – jurídi­ca, social e emo­cional­mente – de decidir sobre o seu próprio des­ti­no. Nas palavras de Naf­fah Neto: “O louco é trans­for­ma­do num fan­toche que deve ser manip­u­la­do pelo poder/saber médi­co”. Na lit­er­atu­ra, o poder dis­cricionário das autori­dades médi­cas, “cien­tí­fi­cas e com­pe­tentes”, pode ser obser­va­do no con­to “Só vim tele­fonar”, do autor colom­biano Gabriel Gar­cía Márquez, e no con­to-nov­ela “O Alienista”, do escritor brasileiro Macha­do de Assis. De difer­entes maneiras, ambos tratam de ques­tionar a visão do saber médi­co como dis­cur­so incon­testáv­el, capaz de manip­u­lar, sub­ju­gar e aniquilar iden­ti­dades. Tan­to o hos­pí­cio como a prisão atu­am como insti­tu­ições de dis­ci­plina e con­t­role, crian­do novas modal­i­dades de fis­cal­iza­ção e domínio jus­ti­fi­cadas pela legit­im­i­dade científica.

    Rodrigo Santoro em  “Bicho de Sete Cabeças” (Foto: Marlene Bérgamo)
    Rodri­go San­toro em “Bicho de Sete Cabeças” (Foto: Mar­lene Bérgamo)

    Em arti­go inti­t­u­la­do “Lou­cu­ra e Crim­i­nal­i­dade: Desven­dan­do os mis­térios das moral­i­dades anô­malas”, Felipe da Cun­ha Lopes e Íta­lo Cris­tiano Sil­va e Souza dis­cor­rem sobre a asso­ci­ação entre lou­cu­ra e crim­i­nal­i­dade fei­ta pelo dis­cur­so médi­co teresinense entre as décadas de 1870 e final da déca­da de 1930. Segun­do o arti­go, os arti­c­ulis­tas que escrevi­am para jor­nais piauiens­es da época asso­ci­avam lou­cu­ra à práti­ca de crimes, ale­gan­do a existên­cia da insanidade em crim­i­nosos e da crim­i­nal­i­dade em loucos (basea­d­os na teo­ria da degenerescên­cia). Com base nes­sa ideia, percebe-se a “prob­lema­ti­za­ção da lou­cu­ra em função da vir­tu­al­i­dade crim­i­nosa”. Os autores do arti­go lem­bram que “(…) a psiquia­tria foi uma das prin­ci­pais fer­ra­men­tas uti­lizadas para jus­ti­ficar e elab­o­rar estraté­gias de con­t­role e trans­for­mação do com­por­ta­men­to do homem em sociedade”. Assim, a med­i­c­i­na trans­for­mou-se em fer­ra­men­ta indis­pen­sáv­el para man­ter dis­pos­i­tivos de con­t­role social.

    Hospício de Barbacena (MG)
    Hos­pí­cio de Bar­ba­ce­na (MG)

    O regime de ver­dade e a imposição de uma supos­ta nor­mal­i­dade exigem trib­u­tos caros; preço que é pago a sangue e alma por um número ines­timáv­el de pes­soas que foram e con­tin­u­am sendo excluí­das, tran­cafi­adas e esque­ci­das. Os exem­p­los de desre­speito e invis­i­bil­i­dade extrap­o­lam pági­nas de livros e dados de pesquisas. Eles estão mar­ca­dos no coração dos sobre­viventes do Hos­pí­cio de Bar­ba­ce­na (MG), do Juquery e muitas out­ras insti­tu­ições de con­t­role e domínio.