Author: Juliana Cristina da Silva

  • Dica de leitura: Macanudo

    Dica de leitura: Macanudo

    Macanudo, em espan­hol: extra­ordinário, exce­lente, estu­pen­do, magnífico.

    E é essa palavra que é usa­da para o títu­lo da coleção de tir­in­has do car­tunista argenti­no Lin­iers, ou mel­hor, Ricar­do Siri Lin­iers, nasci­do em Buenos Aires, que quan­do cur­sou pub­li­ci­dade perce­beu que o que mais gosta(va) de faz­er é desenhar.

    Dono de um traço encan­ta­dor, é difí­cil diz­er qual per­son­agem é o mais inter­es­sante, porque todos trazem um pouco da questão do exis­ten­cial­is­mo e quase sem­pre faz refer­ên­cia a out­ros artis­tas. Nada mel­hor que palavras de uma car­tunista para explicar mel­hor quem é Lin­iers:

    foto por Juliana via Flickr

    Qual­quer um pode desen­har um gato, qual­quer um pode desen­har uma garo­ta ou um homem com chapéu, mas não é qual­quer um que pode faz­er com que esse gato, essa garo­ta ou esse homem com chapéu sejam difer­entes de todos os que tivésse­mos vis­to ante­ri­or­mente e passem a faz­er parte do mun­do como se os conhecêssemos.
    Lin­iers desen­ha per­son­agens, e seus per­son­agens são extra­ordinários. E os desen­ha tão bem que são todos lin­dos, até os feios são tão per­feita­mente feios que são belos. Solitários, com uma inocên­cia pop à vezes meio per­ver­sa, movem-se com elegân­cia entre a tris­teza e o assom­bro, como atores anôn­i­mos de pequenos filmes B caseiros.
    Lápis, nan­quim e aquarela se unem habil­mente com a poe­sia e o absur­do em um mun­do cheio de sur­pre­sas. Qual­quer coisa pode acon­te­cer em Macanudo. Suas histórias caem no humor inocente com a pureza de quem des­fru­ta das coisas mais bobas da vida.
    Lin­iers desen­ha um mun­do duro com abso­lu­ta del­i­cadeza. Uma ale­gria melancóli­ca que con­trasta com a feli­ci­dade boba. Seu tra­bal­ho é belo e diver­tido. E ele é um rapaz macanudo.”
    (Mait­e­na in: Macanudo n. 1 / por Lin­iers. Camp­inas, SP: Zara­batana Books, 2008.)

    Quem quis­er con­hecer um pouco mais desse car­tunista, pode vis­i­tar seu site ou espi­ar a Ilustra­da do jor­nal Fol­ha de S. Paulo, de segun­da a sexta.

    Aqui no Brasil suas tir­in­has são pub­li­cadas pela Zara­batana, e infe­liz­mente só tem pub­li­ca­do até o vol­ume 3. Infe­liz­mente, porque na Argenti­na as tir­in­has estão no 8º volume.

  • Livro: Leite Derramado — Chico Buarque

    Livro: Leite Derramado — Chico Buarque

    Eulálio Mon­tene­gro D‘Assumpção (sem pro­nun­ciar o “p” mudo para não causar deboche) é o pro­tag­o­nista do romance de Chico Buar­que, Leite Der­ra­ma­do, pub­li­ca­do pela Com­pan­hia das Letras em 2009. Este sen­hor com pouco mais de 100 anos, encon­tra-se em um leito de hos­pi­tal, de onde nar­ra suas memórias e pen­sa­men­tos, nem sem­pre cronológi­cos, seja porque sua memória já o con­funde ou por estar sob efeitos dos medica­men­tos, por isso muitas vezes em Leite Der­ra­ma­do aparece: “Não sei se já lhes con­tei algu­ma vez como con­heci Matilde na mis­sa do meu pai…”; as pes­soas para quem ele con­ta os fatos são as enfer­meiras, sua fil­ha ou ape­nas divagações.

    Den­tro desse emaran­hado de pen­sa­men­tos e lem­branças nos damos con­ta de aspec­tos da história do Brasil, dos acon­tec­i­men­tos na sociedade do Rio de Janeiro do sécu­lo pas­sa­do, falar em francês na pre­sença dos empre­ga­dos, por exem­p­lo, e até mes­mo feitos dos famil­iares desse ancião na Europa. A par­tir do “que­bra-cabeça históri­co” apre­sen­ta­do em Leite Der­ra­ma­do, podemos encon­trar refer­ên­cia à vin­da da família real por­tugue­sa, com a qual veio o seu trisavô, à belle épóque, à Segun­da Guer­ra Mundi­al, à que­bra da bol­sa de Nova Iorque e à ditadu­ra mil­i­tar. Todos ess­es fatos nos são nar­ra­dos para lem­brar da importân­cia do seu sobrenome per­ante a sociedade que aos poucos, com a vin­da dos netos, bis­ne­tos e tatarane­tos vai tor­nan­do-se cada vez menos impor­tante, pois antiga­mente era um sobrenome que lhes abri­am por­tas e ago­ra no pre­sente não influ­en­cia em mais nada.

    Chico Buar­que, através do apan­hado de infor­mações, faz uso muito refi­na­do da lin­guagem, usan­do flash-backs não-lin­ear­es, con­fundin­do o leitor e inserindo a temáti­ca do racis­mo com sutileza, como por exem­p­lo a Matilde que é descri­ta como “a mais escur­in­ha das irmãs” ou o seu dese­jo sobre o seu cole­ga fil­ho de escravo.

    Sob meu olhar de leito­ra, Leite Der­ra­ma­do está próx­i­mo ao Budapeste, com histórias e per­son­agens difer­entes, claro, mas com uma cer­ta aprox­i­mação na vida das per­son­agens, ambos estão “per­di­dos”, ou mel­hor, em algum tipo de decadên­cia, e próx­i­mo tam­bém ao Estor­vo, pela descrição das cenas no Rio de Janeiro. Quan­to à for­ma da lin­guagem, cer­ta­mente Chico Buar­que cresceu muito neste, Leite Der­ra­ma­do, pois ele con­segue pren­der o leitor durante toda a nar­ra­ti­va, talvez pela empa­tia que o vel­ho Eulálio nos causa ao con­tar sobre sua ama­da Matilde, mas prin­ci­pal­mente pelo pri­mor da escri­ta, na maio­r­ia das vezes pare­cen­do fluxo de con­sciên­cia, e aí está o pri­mor do romance, Chico Buar­que con­segue faz­er uso da lin­guagem como poucos, pren­den­do e con­fundin­do o leitor na nar­ra­ti­va, mas sem que ele ten­ha se per­di­do ao elab­o­rar a obra.

    Com as car­ac­terís­ti­cas apon­tadas sobre traços históri­cos, out­ro traço que podemos destacar é o traço psi­cológi­co do pro­tag­o­nista, a par­tir das descrições e lem­branças dele, é pos­sív­el anal­is­ar a fal­ta que fez uma estru­tu­ra famil­iar, o quan­to o deixou per­di­do as via­gens com o pai para a Europa e a aprox­i­mação das moças nas sofisti­cadas suítes dos hotéis, con­hecer a neve das mon­tan­has etc. Creio que tam­bém o que mar­ca psi­co­logi­ca­mente o pro­tag­o­nista de Leite Der­ra­ma­do é a presença/ausência de Matilde, pre­sente sem­pre em suas memórias, mas ausente a par­tir de alguns acon­tec­i­men­tos e é quan­do Eulálio relem­bra da ama­da que seus pen­sa­men­tos se con­fun­dem. Vale a pena dedicar alguns momen­tos para con­hecer mel­hor esse vel­ho saudo­sista e se perder entre as palavras der­ra­madas nesse romance do Chico Buar­que, Leite Der­ra­ma­do.

    Assista o autor lendo tre­chos da obra:

    httpv://www.youtube.com/watch?v=_tkaXxXXKVI&feature=player_embedded