No dia 23 de fevereiro, uma das típicas noites chuvosas Curitibanas, Rafael Sica esteve na Itiban Comic Shop lançando e conversando sobre seu livro Ordinário (Companhia das Letras, 2011). Antes do bate-papo — que você acompanha aqui — a equipe interrogAção conversou com o Sica sobre quadrinhos, referências, situação do livro no Brasil e até mesmo o assunto de licenças autorais apareceu na conversa.
Entrevistar um quadrinista como Rafael Sica não é uma tarefa muito fácil. O gaúcho tem um estilo de quadrinho que ao mesmo tempo que soa hermético à primeira olhada é também aberto, possível das mais diversas interpretações. O blog dele recebe, em cada nova postagem, uma enxurrada de críticas, teorias, elogios virtuais e de tudo mais um pouco. Decididos que não iríamos levar muitas perguntas anotadas, optamos por ter um bate-papo forjado nas idéias, ligações, teorias e curiosidades que tínhamos em relação ao quadrinista/ilustrador. Ligamos o gravador e o resultado você acompanha logo abaixo, e bem, recomendo: leia/observe/teorize Ordinário, de Rafael Sica (ou acesse o blog), vale a pena!
Observando seu blog, nota-se algo interessante: Você não responde os comentários, né? Você nunca respondeu. Existe até pseudônimos de ¨Eu¨ nos comentários, é você ou alguém que comenta?
Não, não respondo e esse “eu”, não sou eu. Até porque o legal dos comentários é uma interpretação dos trabalhos, né. Muitas vezes tem cara xingando ou viajando a respeito do trabalho, sempre achei que se eu interferir ali, ou explicar alguma coisa não funcionaria.
O que você acha das pessoas tentando explicar, teorizar … Dá para notar muita gente ali tentando explicar o trabalho.
Eu acho que essa é a proposta do trabalho, né. É um trabalho aberto, que só sugere, é silencioso, não tem texto e nem é discursivo. Então, é a abertura que o trabalho se dá pra o leitor, a idéia acaba sendo que o leitor também trabalhe, completando o desenho. Então acho ótimo, quando não tiver ninguém comentando ou tentando adivinhar é porque o trabalho já falou tudo, fez tudo sozinho. Prefiro essa interferência, acho que é sempre bem vinda.
Como é lidar com as críticas?
É tranquilo, me divirto com aquele espaço. Até que, quando vem críticas, geralmente são comentários anônimos, com apelidos e tudo assim, então não tem como levar muito em consideração. Mas tudo bem, acho ótimo. Se existisse mais crítica de quadrinhos no Brasil… Mas as críticas geralmente vem como ofensa, ou alguma coisa recalcada. Mas leio sempre, acompanho.
Os quadrinhos sem narrativa exigem mais do leitor…
Existe uma narrativa, mas é gráfica, visual. Sim, exige que o leitor complete o trabalho. E é essa realmente a proposta dele, fui tirando o texto das tiras — no começo do blog eu usava um certo número de palavras — diminuindo o número de palavras e fui me dando conta de como isso potencializava as interpretações.
Acho que isso direciona de certa forma, né?
É, existe um tema ali central, existe uma coisa que a pessoa se identifique. Mas não está dizendo nada, não está sendo discursivo, botando um ponto. Não há uma só explicação ou teoria sobre qualquer coisa, é mais para levantar questões mesmo. E levantando elas, os comentários são muito bem vindos.
Por que você faz tiras? Você já pensou em fazer histórias? Muita gente comenta no seu blog que falta começo, meio e fim, que as tiras não têm uma lógica. Até estávamos conversando que a literatura contemporânea hoje — por exemplo Daniel Galera, Bonassi, Ruffato — não tem isso, e também não precisa ter para haver lógica.
De fato não. Tem essa cultura do humor gráfico narrativo, da piada que termina em história. Acho que se eu fizesse uma história maior, iria pelo mesmo caminho, deixaria uma história mais aberta sem começo, meio e fim, uma coisa que fizesse certa lógica, mas penso que a abertura que o trabalho pode dar sempre é mais importante. A não ser que vá fazer um quadrinho-jornalismo, ilustrativo ou autobiográfico, aí tudo bem, faz sentido. Mas nesse caso não, numa obra de ficção não faz sentido precisar ter essa essa estrutura.
Uma pergunta meio clichê, mas qual são as tuas influências, em qualquer área?
Nossa, tem tanta coisa! É dificifil achar todos os nomes para conseguir fazer que fique alguma coisa que defina o trabalho. Na verdade é uma coisa muito pessoal de observação mesmo da realidade. Somos influenciados toda hora, estamos sempre descobrindo alguém novo, ou um trabalho que eu gosto muito. As vezes se descobre o trabalho de alguém que tem muito haver com o teu trabalho e parece até que você já leu ele e está fazendo alguma coisa como se ele tivesse sido influência, mas você nem sabia que ele existia. Um autor que conheci chamado Gonçalo Tavares, só fui conhecer depois, e realmente, tu vai ler as coisas e tem a ver. Tem um desenhista americano chamado Edward Gorey, as coisas do Mutarelli, o Kafka… não sei, tem muita coisa de tudo no meu trabalho.
Há muito do humor negro né?
É a escola do meu desenho, vem daí do humor gráfico. É a escola do quadrinho brasileiro, o Chiclete com Banana, o Animal, que já não era tanto humor. Mas vem daí de fazer charges, cartoon…
E a escolha do preto e branco? Tem alguns quadrinhos teus que tem cores…
É uma opção mesmo. Se eu fosse pintar, eu pintaria ou no computador, que fica um coisa meio mecânica que eu não gosto muito, ou uma aquarela, que acho que iria ficar muito fofo e muito bonitinho. Eu fico contente com o preto e branco, acho que atinge um resultado que me interessa.
Como é que chegou a decisão de publicá-los na internet? Começou com eles no blog?
O blog começou em 2004, na eṕoca que eu fui morar em São Paulo e precisava de um espaço para fazer um portfólio, para trabalhar com ilustração. Aí eu fiz ele para postar minhas coisas, era uma coisa muito dispersa, tinha um pouco de tudo. Tinha quadrinhos, muitas ilustrações, funcionava mais como um portfólio mesmo, até que foi tomando um caminho de publicação do trabalho de quadrinhos mesmo. Comecei a encarar como se fosse um fanzine, publicar com uma certa regularidade, passou a ter mais leitores. Foi um caminho muito natural, não foi nada planejado. Chegou um ponto em que eu começei a publicar tiras em jornal, todo dia, e publicar também no blog.
Aqui ou no Sul?
São Paulo e Rio Grande do Sul. Trabalhei em redação de jornal, publicava as tiras lá, isso acho que em 2006 mais ou menos. Fui publicando no site sempre, e ele tem esse liberdade de você poder fazer o que quiser num trabalho. No jornal tinha muita resposta do leitor e cobrança do editor: “isso não faz sentido”, “tem que fazer que nem eu gosto”, “por que você não tenta fazer isso e não aquilo?”, coisa que o blog não tem né, tu bota o que tiver afim.
O tamanho da imagem do blog, pequena, é de propósito?
É de propósito sim, eu gosto dela pequena assim. Que é para parar e prestar atenção, chegar mais perto…
Você usa alguma ferramenta para trabalhar as tiras no computador?
Faço tudo direto na mão mesmo. As vezes ajeito depois uma coisinha ou outra, mas coisa mínima, não chego a completar desenhos nem repetir quadros. Acho meio relaxado repetir cenários. Muitas tiras vão sem nenhuma modificação, até porque muitas vezes a sujeirinha fica legal.
Dá para notar mesmo que você não repete cenário e etc.
Sim, estou fazendo uma história grande agora que tinha umas 20 vezes o mesmo cenário…dá muito trabalho mesmo.
As suas tiras tem muito do cotidiano, aquilo que comentei do contemporâneo, do efeito da realidade extremo, mas é ao mesmo tempo surreal. Você surrealiza em muitos momentos a realidade, um choque das duas coisas. Acho que algumas das críticas mais recorrentes é disso, que você ¨viaja¨.
É uma maneira de subverter a palavra, mas eu subverto a realidade mesmo. As vezes é a melhor maneira de você se fazer entender, transpor essa realidade para um outro conceito. Eu uso seguido também o truque do fantástico, do personagem que é estranho ou tem cara de bicho, um personagem que voa ou monstros.
Os palhaços, os comediantes.…
Sim, tem muita coisa meio mímica, cinema.
Tem o quadrinho do mímico que veste a luva… São ironias que ao invés de serem irônicas e hilárias são totalmente sem reação.
Sim, tem umas coisas pesadas, né. Então essa ironia vem a favor.
Isso tudo você tira do dia a dia, da observação?
Do dia a dia, ou de alguma coisa que estou lendo. Eu nunca tenho um lugar certo.
O que você tá lendo hoje?
Eu tô lendo Michel Foucault, tava lendo no avião (risos). Eu ando interessado sobre a história dos hospícios, sobre saúde mental. Eu tô cansado de ler romance, aí to lendo ensaios que é uma coisa que pode te dar idéia. Romance tu pensa ¨Putz, eu poderia ter feito isso¨ e agora já tá pronto. Então, ler ensaio e artigo é uma coisa que eu tenho gostado de fazer.
Hoje, você vive de quadrinhos?
Não. Eu tenho feito cada vez mais coisas de quadrinhos, mas vivo de ilustração, de editorial, uma coisinha ou outra de projeto gráfico. Mas, quadrinhos não é tão fácil.
Você acha que hoje o mercado está melhor para os quadrinistas? No Brasil pelo menos?
Sim, tá mais maduro. Tem cada vez mais editoras investindo nos quadrinhos. Tem selos de quadrinhos. Tem a lei de incentivo à leitura. Eu espero que não seja passageiro como foi nos anos 80, que tinha revistas com milhares de autores. Tem essa coisa de estar mais elitizado, de ser vendido em livraria e já não é todo mundo que tem acesso.
Você começou publicando seus quadrinhos no blog e hoje tá lançando os quadrinhos pela Cia das Letras. Hoje, as pessoas vêem a internet como o apocalipse dos livros e nesses mesmos aspectos de divulgação, como você vê a internet? Ela é importante, te ajuda como quadrinista?
Eu tenho um bom retorno, todas as tiras do livro foram publicadas antes na internet, então me ajudou. Eu acredito que ajuda muito na divulgação do trabalho e no boca a boca mesmo. Eu não sou muito de redes sociais, mas os amigos e pessoas próximas a mim ficam twittando ou colocando coisas no facebook e eu acabo tendo o retorno disso. Eu acho que se tivesse como viablizar a venda de quadrinhos pela internet — e eu ainda não descobri como fazer isso — acho que seria muito interessante, seria legal. Enfim, por enquanto é meramente para divulgação e uma base de experimentação de publicação.
Como é que você lida com outros sites pegarem seus quadrinhos e usarem sem pedir permissão, não falarem nada?
Tranquilo, é uma das regras do jogo, né. Não tem como fazer diferente na internet, eu gosto que fique aberto é bem a minha ideia mesmo.
Você conhece a licença Creative Commons? Uma licença que você coloca e permite que as pessoas podem divulgar e fazer coisas a vontade mas não pode vender, ganhar dinheiro com isso, por exemplo?
Ah, aí já é outra coisa, né. Se eu descobrir algo vai ter que ter uma assessoria para isso, com advogados. Aí Se a coisa é complicada ou vira uma estampa de camiseta, por exemplo, como já aconteceu com uns desenhistas que eu conheço, vira um jogo de chá ou sei lá o quê, aí incomoda né. Mas essa coisa de republicar em blog, site, contanto que não seja um site dirigido por alguma corporação, por mim é tranquilo. É para usar de uma maneira livre também, não é para ganhar dinheiro assim, porque tem um trabalho meu aí, né.
Há sempre o escritor/quadrinista que só se sente um profissional com um livro lançado, na estante. Como é isso para você?
Eu gosto de ter material publicado. Acho que é um amadurecimento do trabalho mesmo, a ponto de eu ter conseguido publicar em uma editora, poder distribuir o material, o livro tá ali impresso, tem uma vida longa maior. Eu publiquei em várias revistas independentes e tal e você sabe que isso a partir de um momento se esgota e você tem que correr atrás. O livro tá ali editado, o material tá registrado e tal, isso me agrada bastante, ter as coisas publicadas e acaba chegando um pouco diferente do que publicar na internet. O que eu sinto, que é uma pena, que as vezes você trabalha algum tempo e só agora, depois de publicado, que o trabalho é visto com um certo reconhecimento. Talvez nem reconhecimento, mas atenção mesmo e certo respeito pelo trabalho. Só acho um pouco chato que seja assim, que a imprensa e as pessoas que formam opinião estejam ligadas a essa história de que o material tem que estar publicado, que tem que ter uma editora por trás para o trabalho ter um certo valor. Infelizmente ainda tem resquícios disso.
Mas também é legal isso…
Nem é tanto assim sabia, a porcentagem é muito curta. O Laerte falou uma coisa que é legal: O Brasil é um país de três mil leitores, nenhum livro sai com mais de 3 mil exemplares.
Só o Crepúsculo e olha lá…
Só o Crepúsculo e olha lá mesmo. Esse aí já sai com tudo, bandejinha, mochila, agenda, caneca…
Uma coisa interessante é que mesmo os teus quadrinhos tendo um conteúdo mais pesado e de humor negro, a Cia das Letras se interessou pelo teu trabalho e isso vai entrar para um público maior, querendo ou não, e isso representa uma reflexão das pessoas. Nem que seja para xingar no teu blog, alguma coisa vai causar…
É, a editora arriscou. Um autor desconhecido, publicava na internet, jovem. É um risco que eles estão correndo. Mas o livro tem tido uma resposta boa também.
Quais outros cartunistas, estrangeiros, você se inspira também?
Além do Edward Gorey, tem o Charles Addams também, que fez a Família Addams, os cartuns dele são incríveis. Sei lá, o próprio Crumb quando eu descobri, alguns ilustradores argentinos…
Há algo meio onírico em seus desenhos? Do tipo, você sonhou algo e desenha.
Não, não muito. Eu sonho algumas coisas estranhas, mas dificilmente isso vira desenho. Mas as vezes tem a intenção de parecer um pesadelo, um lugar sem saída, tu sabe onde está mas não sabe, pessoas que você acha que conhece mas não conhece. Tem a coisa do silêncio também.
Como é que você compilou as ideias para aquele quadrinho com os comentários dos leitores?
Ah, eu passei uns bons dias lendo bastante os comentários e selecionando os mais interessantes. Aí eu peguei e tentei vestir com o inverso mesmo, pegando um personagem nada haver com o que foi falado.
Existe um caminho para começar a ser desenhista, ilustrador, e ter um estilo próprio? Você teve esse caminho?
Eu começei a desenhar desde a infância. Mas é aquela coisa das primeiras coisas que tu vai lendo enquanto tu tá formando a tua cabeça, tu começa a copiar mesmo, o que tu gosta. E aí até que o desenho mesmo vai te dando o caminho. É um exercício desenhar, ter o teu traço particular.
Você deveria publicar umas coisas mais velhas.
Não, não. Essas a gente esconde. [risos]
O que você usa para desenhar?
Hoje em dia uso mais caneta, ou pena para dar aquele efeito mais fluído. As vezes um pincel seco… tem coisa em lápis também.
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